16 fevereiro, 2022

Pressionada na Amazônia e no mar, ANP tenta deslocar riscos socioambientais para o Nordeste

Agência indicou nesta quarta-feira que leilão de 13 de abril oferecerá áreas de menor visibilidade e em locais que ainda se recuperam do grande vazamento de 2019

Em mobilização às margens do Rio São Francisco, em Brejo Grande (SE), em 24 de outubro de 2021, marisqueiras, pescadores e quilombolas exigem da ExxonMobil que interrompa projeto de extração de petróleo e gás próximo à costa sergipana. Foto: Aquiles Castro/350.org

 

No dia seguinte ao vazamento de petróleo em uma lagoa próxima ao Rio Doce, em Linhares (ES), e na sequência de grandes vazamentos de petróleo no Peru, no Equador e na Argentina, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) anunciou nesta quarta-feira (16/02) os setores que estarão em disputa no leilão de áreas de exploração que a agência realizará em 13 de abril, como parte do 3º Ciclo de Oferta Permanente.

Serão 378 blocos, em 14 setores, localizados nas bacias Espírito Santo (21 blocos), Pelotas (9), Potiguar (175), Recôncavo (74), Santos (23), Sergipe-Alagoas (61) e Tucano (15). Todos esses setores já receberam declaração de interesse acompanhada de garantia de oferta de pelo menos uma das 78 empresas inscritas no certame.

Representantes da 350.org e de organizações em regiões potencialmente afetadas pelo leilão ou já afetadas pelo setor de petróleo e gás reagiram ao anúncio. Veja a seguir.

ASPAS PARA REPORTAGENS

Maria José Bezerra dos Santos (Deca), pescadora e presidente da Associação Quilombola Dom José Brandão de Castro, em Brejo Grande (SE), onde a ExxonMobil está tentando licenciar 11 poços exploratórios.

“Não aceitamos essas empresas que querem tirar o nosso modo de vida. No Baixo São Francisco, nós vivemos do rio, do mar e do mangue e não podemos ver tudo isso ameaçado. A coleta do caranguejo e a pesca já foram muito afetadas nos últimos anos, e empresas de petróleo e gás querem fazer muito mais, mas não deixaremos que acabem com o nosso direito de viver”.

Alexandre Anderson, pescador artesanal e presidente da Associação dos Homens e Mulheres do Mar da Baía de Guanabara, em Magé (RJ)

“Faz mais de 20 anos que nós, pescadores da Baía de Guanabara, lutamos para evitar que as empresas de petróleo e gás destruam completamente esse cartão postal do Rio de Janeiro. É uma luta complicada, mas temos vitórias importantes, e vamos usar nossa experiência para apoiar os movimentos de pescadores em todo o Brasil pela proteção de seus territórios diante dos combustíveis fósseis”

Adilson Ramos Neves (Russo), Presidente da Associação de Pescadores Artesanais de Ubu e Parati (ES)

“Na minha comunidade, somos diretamente impactados pela Petrobras, Shell e Chevron. Quando sabemos que o governo quer passar mais e mais blocos de exploração de petróleo e gás, perguntamos: ‘quando vão parar com isso e deixar o meio ambiente se recuperar e os pescadores poderem pescar?’”.

Ilan Zugman, diretor da 350.org na América Latina

“O leilão de 13 de abril marca a tentativa de evitar a exploração em locais já reconhecidos globalmente pela sua relevância ambiental, como a Amazônia e áreas marítimas próximas a Fernando de Noronha e Abrolhos, e transferir o risco socioambiental do petróleo e do gás para vários pontos do Nordeste brasileiro, que têm menor visibilidade internacional”.

“Esse movimento do setor rumo ao Nordeste brasileiro eleva o risco de comunidades já bastante vulneráveis enfrentarem novos vazamentos de petróleo, perseguição de lideranças, invasões de seus territórios e deslocamentos forçados. A ANP e as empresas participantes do leilão estão agravando o descaso histórico do Brasil com os moradores dos estados da região”.

“Além de gerar o risco de desastres nos locais de exploração, a expansão do petróleo e do gás promovida pela ANP é um escárnio com a política ambiental brasileira. É vergonhoso que a agência siga estimulando os combustíveis fósseis, quando todos os esforços deveriam estar concentrados em promover uma transição energética justa o quanto antes, para colocar o Brasil na vanguarda global”.

ANÁLISE DA 350.ORG

Nota-se uma forte concentração dos blocos ofertados em áreas onshore (em terra firme) na região Nordeste do Brasil, caso de 325 dos 378 blocos à disposição. Esse movimento consolida a tentativa da ANP e das empresas de combustíveis fósseis de fugir da pressão popular e da insegurança jurídica enfrentadas na tentativa de exploração de outras fronteiras, como a Amazônia e os blocos offshore (marítimos) do litoral nordestino.

Analistas setoriais e imprensa atribuíram o encalhe de vários blocos ofertados nos leilões mais recentes da ANP, entre outros fatores, à pressão da sociedade pela proteção das florestas tropicais e de áreas marinhas protegidas. Blocos mais próximos a Fernando de Noronha, por exemplo, já estiveram em leilão pelo menos duas vezes, desde 2019, mas nunca receberam uma proposta. Áreas na Bacia do Amazonas ou em pontos do oceano que poderiam afetar o Parque Nacional Marinho dos Abrolhos também já foram rejeitados recentemente.

Para evitar novos fiascos comerciais, a ANP anunciou em dezembro de 2021 que os leilões realizados a partir de 2022 seguirão o modelo de oferta permanente, em que a agência só leva um bloco à disputa depois que pelo menos uma empresa manifestou compromisso de adquiri-lo.

O resultado da mudança de modelo pôde ser observado no anúncio desta quarta-feira. Saíram de cena as regiões onde os riscos socioambientais são mais evidentes e, portanto, onde a atuação da Justiça e os danos à imagem das empresas tornariam mais cara e difícil a operação, e entraram na mira os locais onde os prejuízos coletivos inerentes ao setor podem ser mais facilmente escamoteados.

Como comprova o histórico de desastres provocados pelo setor de petróleo e gás em todo o mundo, incluindo os vários acidentes de grandes proporções registrados nos últimos três meses na Argentina, no Equador, no Peru e no Brasil, a expansão do setor no Nordeste brasileiro traz motivos de preocupação para os moradores da região.

A abertura de novas áreas de exploração eleva a vulnerabilidade das comunidades mais pobres aos vazamentos e à perseguição de lideranças sociais, em uma região onde as desigualdades sociais já são extremamente elevadas. Basta lembrar que as comunidades litorâneas ainda sofrem com os impactos do vazamento de petróleo que atingiu o litoral de todos os nove estados do Nordeste, em 2019, e que manchas de óleo seguem aparecendo em diversas praias da região desde o início de fevereiro de 2022.

Além disso, o avanço sobre o Nordeste põe em risco ecossistemas preciosos ao país, que podem contribuir para o desenvolvimento da região, se utilizados de forma sustentável. Prejudica, também, a transição energética global e a capacidade brasileira de cumprir suas metas de redução das emissões no Acordo de Paris.

A boa notícia é que as empresas de petróleo e gás, principais responsáveis pela crise climática global, e a ANP encontrarão resistência. Comunidades pesqueiras, quilombolas e rurais de áreas que já sofreram com os vazamentos, como a dos pescadores da Baía de Guanabara, lutam há mais de 20 anos e colecionam exemplos de sucesso na garantia de seus direitos e na preservação ambiental. Desses grupos virão, mais uma vez, as respostas e propostas para a transição justa de que o Brasil precisa.

CONTATO PARA A IMPRENSA

Peri Dias
Comunicação da 350.org na América Latina
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