No dia 25 de janeiro, uma barragem de minério da Vale se rompeu na cidade de Brumadinho (MG), fazendo com que 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos e lama tóxica se espalhassem na região. Até o momento, mais de 150 mortes foram confirmadas, com 182 desaparecidos na região. Para entender de que forma podem ser evitados novos acidentes como esse e também avaliar o que pode ser feito para restaurar a cidade, localizada na região metropolitana de Belo Horizonte, a equipe da 350.org conversou com engenheiro florestal, ex-Ministro do Meio Ambiente (2002) e ex-Secretário do Meio Ambiente de Minas Gerais (2008-2010), José Carlos Carvalho. Confira:
Como ex-Ministro e ex-Secretário do Meio Ambiente de Minas Gerais, quais são as principais mudanças que devem ser feitas no setor da mineração?
Existem dois eixos de mudanças que precisam ser feitas, uma delas é na esfera da governança pública ambiental. O problema que vemos no Brasil, envolvendo essas tragédias ambientais no setor da mineração e também em outros setores, é que elas estão muito relacionadas ao fato de que a Política Ambiental Brasileira – que embora apresente cinco instrumentos de atuação previstos na Lei Nacional da Política Ambiental Brasileira, entre eles o monitoramento, fiscalização, zoneamento, informação e o licenciamento – acabou se resumindo a apenas um dos seus instrumentos: que é o licenciamento.
O que acontece no Brasil é que como a variável ambiental não foi incorporada às políticas públicas setoriais no momento da sua formulação e da sua implementação, a questão ambiental só aparece no balcão do licenciamento. Para mudar isso, o País deveria a estabelecer uma política inteligente de planejamento ambiental, trabalhando com o conceito de avaliação ambiental estratégica, antes do licenciamento – de tal forma que, no momento em que é decidido fazer um empreendimento, já existam os instrumentos de avaliação ambiental para se ter acesso aos primeiros indicativos de viabilidade ambiental da obra.
Para ter um exemplo, você tem na Constituição Brasileira o subsolo como propriedade da União. Por conseguinte, quem concede o direito de uso mineral é o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), que recentemente virou a Agência Nacional de Mineração (ANM). Essa concessão é feita sem nenhum tipo de avaliação ambiental. Ou seja, você não faz nenhuma avaliação ambiental estratégica, que seria muito interessante já neste momento, para dar um indicativo dos impactos possíveis, para que a sociedade já pudesse tomar conhecimento dessa questão.
“Para mim, existem dois tipos de soluções que são perigosas: a primeira delas é atribuir ao próprio infrator a responsabilidade de recuperar, sem controle social nenhum. A outra, pior ainda, é depositar o dinheiro na conta do poder público. Então, o que eu imagino, é a criação de um fundo com gestão independente e controle social”
O tema do meio ambiente aparecer só quando a decisão de fazer um empreendimento já foi tomada é um grande problema. A expectativa de que você poderá vetar algo na fase de licenciamento é um sonho – quase impossível. E isso se dá porque o licenciamento é feito apenas para estudar os impactos ambientais, aferi-los, verificar se algum impacto foi subestimado ou ocultado, e, assim, ele será feito para definir as medidas mitigadoras e compensatórias relacionadas ao empreendimento. Eu defendo que é necessária uma mudança na Política Nacional do Meio Ambiente para que seja estabelecido algum tipo de instrumento de avaliação ambiental antes do desmatamento e incluir a variável ambiental no momento de decidir a viabilidade dos empreendimentos.
Além disso, embora exista uma Política Nacional de Segurança de Barragens, que foi iniciada como um Projeto de Lei na época em que fui Secretário do Meio Ambiente, isso acabou se tornando inócuo diante do total sucateamento da ANM e também no Sistema Nacional do Meio Ambiente.
Temos também outro eixo, que é a responsabilidade das empresas, visto que não é aceitável ter de forma tão recorrente esses acidentes, sobretudo com a gravidade que foi Mariana (MG) e agora Brumadinho (MG). O fato é que o setor mineral não evoluiu tecnologicamente, continuou atrasado, usando o minério de baixo teor de ferro por meio de lavagem para separar a argila e a sílica. É preciso investir em exploração a seco. Caso seja inevitável, é necessário investir em outras formas para construir essas barragens, formas mais seguras. As empresas utilizam as técnicas mais baratas para a construção, que são chamadas as barragens de montante, eles fazem o alteamento da barragem usando o material depositado na própria estrutura – reduzindo drasticamente a segurança.
Protocolos de segurança e gerenciamento de risco – fator que envolve o setor público e privado – são imprescindíveis. É indesculpável que uma empresa – a segunda maior do mundo em mineração e primeira em minério de ferro, três anos depois de Mariana, com todas as tecnologias disponíveis para assegurar a atividade – ter outro acidente que atingiu inclusive o próprio escritório e o refeitório, pois foram construídos abaixo da represa na rota da lama. Isso mostra que nossos protocolos de segurança são insatisfatórios.
O senhor sabe qual é a situação atual das outras barragens em Minas Gerais?
A Fundação Estadual do Meio Ambiente faz esse levantamento. Existe um percentual de barragens que não são consideradas estáveis e, por coincidência, essas duas últimas tragédias ocorreram em barragens consideradas estáveis. Então é necessário analisar melhor essas questões.
O que o senhor recomenda para a restauração de Brumadinho?
Certamente é necessário buscar uma solução para Brumadinho. E, para mim, existem dois tipos de soluções que são perigosas: a primeira delas é atribuir ao próprio infrator a responsabilidade de recuperar, sem controle social nenhum. A outra, pior ainda, é depositar o dinheiro na conta do poder público. Então, o que eu imagino, é a criação de um fundo com gestão independente e controle social.
“O fato é que a legislação brasileira beneficia o infrator, visto que você não chega a arrecadar, em média, 5% do valor aplicado em multas no Brasil”
Como pode ser cobrada a fiscalização dessas barragens? Há a necessidade de um controle externo ou autônomo?
Eu defendo uma tese que caminha em dois sentidos: você pode estabelecer um processo de auditoria independente por organismos internacionais, mas ela não pode ser contratada pela própria empresa. Há algo também que pode ser ainda mais eficiente: um Protocolo de Segurança e Gerenciamento de Risco com um plano de contingência construído em conjunto com a comunidade potencialmente atingida. É necessário ir de porta em porta, envolvendo essas famílias; as pessoas, na hora que soar a sirene, têm que saber para onde ir.
Além disso, não adianta ter mil fiscais, mas poderiam ser organizados comitês de representação da comunidade. A empresa teria que, mensalmente, ou em um prazo tecnicamente adequado, apresentar para esses representantes da comunidade todos os dados do local e disponibilizar acesso à eles 24 horas por dia.
Há sido frequente a menção de que vivemos em uma indústria de multas no setor do Meio Ambiente. O senhor acha que falta foco na aplicação destas multas?
Quando se fala que há uma indústria de multas, eu costumo dizer que essa indústria faz parte de uma cadeia de montagem automática. O agente só pode aplicar a multa caso haja sido feita uma infração. Para ter uma indústria de multas, tem que haver uma indústria de infrações à lei. O que acontece no Brasil é uma indústria de infrações à lei, o fiscal não pode inventar a multa. O fato é que a legislação brasileira beneficia o infrator, visto que você não chega a arrecadar, em média, 5% do valor aplicado em multas no Brasil. E, sobretudo, são os grandes que se beneficiam do sistema – gastam o valor da multa em advogados, mas não pagam os recursos ao poder público.
E a questão da flexibilização do licenciamento ambiental, como o senhor avalia isso?
Tanto o Governo Federal quanto o governador eleito em Minas ganharam as eleições com esse discurso. Eu acho que a questão não está em flexibilizar, pelo contrário, existem muitos outros fatores que podem dar mais resultados que isso. Acho que se você tratar da questão ambiental lá no início, até será possível ter um licenciamento mais ágil – porque ele já vai chegar redondo. Agora, lamentavelmente, eu acho que Brumadinho deu um choque de realidade tanto no governo federal quanto estadual. Isso pode servir como um ponto de inflexão. Há espaço para aperfeiçoar o licenciamento, sou contra a flexibilização.
O minério de ferro é a commodity que mais vende para o exterior. Acidentes como esses prejudicam a imagem da estabilidade entre a atividade extrativista e o meio ambiente?
Eu acho que arranha a imagem, mas vamos ser sinceros, o maior comprador de minério hoje é a China. A China não está nem aí. Então, não vamos cair na ingenuidade de achar que o país vai criar restrições na compra de minérios do Brasil por causa do meio ambiente e morte de inúmeras pessoas. Pelo contrário, eles podem usar isso para forçar a baixa da commodity no mercado internacional.
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Paulinne Rhinow Giffhorn — jornalista da Fundação Internacional Arayara e da Coalizão Não Fracking Brasil pelo Clima, Água e Vida (COESUS).
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