Por Peri Dias *
Quando eu era criança, há mais de 30 anos, o verão no Brasil trazia sempre as mesmas coisas. Algumas eram boas: praia, sorvete, férias escolares. Mas havia a parte triste: o noticiário de janeiro, fevereiro e março no Brasil já era repleto de tragédias causadas pelos temporais. Bairros inteiros alagavam, estradas ficavam interrompidas por dias, e os telejornais se enchiam de reportagens sobre moradores caminhando nas ruas com água na altura da barriga. E havia também as mortes, lamentavelmente. Há décadas que os deslizamentos de terra e as enchentes do verão matam muita gente, principalmente nas periferias das nossas cidades.
Com toda razão, essas tragédias anunciadas causavam imensa indignação. “Se os governantes sabem que chove muito nessa época do ano, por que não fazem alguma coisa para proteger as pessoas?”, nos perguntávamos a cada verão.
Conforme o verão de 2024 se despede, eu, já com a minha barba um pouquinho grisalha, sigo vendo as mesmas cenas da minha infância. Só no mês de janeiro, nosso despreparo coletivo frente aos temporais matou 12 pessoas no Rio de Janeiro, quatro em São Paulo e destruiu casas e rodovias em 49 municípios do Rio Grande do Sul.
Mas há uma diferença entre as histórias de chuvas extremas que os brasileiros assistimos hoje e as que testemunhávamos 30 anos atrás. Nos depoimentos das pessoas afetadas pelos dilúvios, está cada vez mais frequente ouvir a frase: “Eu nunca vi nada igual”, para se referir à força das tempestades e, consequentemente, das enxurradas, quedas de árvores e deslizamentos.
Já reparou nisso? Se antes concluíamos conversas e reportagens sobre os temporais com uma frase do tipo: “Entra ano, sai ano, e nada muda”, agora o tom geral passou a ser: “O que está acontecendo com o mundo, gente?”. Estamos vendo reações assim em Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Acre, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e tantos outros estados.
A ciência confirma
Não é à toa que, de uns anos para cá, temos a impressão de algo inédito acontecendo. Estudos científicos comprovam que, por causa da crise climática global, já entramos em uma era em que “as chuvas extremas com potencial de gerar desastres são cada vez mais comuns” no Brasil.
Há pelo menos duas dinâmicas associadas à crise climática para que as chuvas “geradoras de desastres” tenham se tornado mais frequentes no Brasil.
1) A crise climática está alterando o volume médio anual de chuvas.
Em alguns lugares do Brasil, como na Amazônia oriental e boa parte da região Nordeste, as secas estão mais frequentes e graves. Já em outros locais, como a Grande São Paulo e praticamente toda a região Sul, o valor médio de chuva anual acumulada aumentou significativamente.
2) Em alguns locais, a crise climática está deixando as precipitações mais concentradas.
Em Porto Alegre, São Paulo e Belém, para ficar em três exemplos de capitais bem distantes umas da outras, aumentou bastante o número de dias por ano em que chove mais de 80 mm, patamar que historicamente era considerado muito alto. Além disso, os dias com 100 mm ou mais de chuva, que eram raríssimos algumas décadas atrás, já são registrados algumas vezes por ano em São Paulo, por exemplo.
Ou seja, o tal “Eu nunca vi chover desse jeito” está mesmo acontecendo, em alguns lugares e períodos. Não é só impressão.
Claro, há outras razões pelas quais os temporais ficaram tão perigosos. Nossas escolhas como sociedade desempenham um papel fundamental na tragédia cotidiana das chuvas no Brasil. De um lado da equação, nós construímos cidades com a seguinte paisagem: rios aterrados, áreas gigantescas cobertas de cimento, poucas estruturas de escoamento e, principalmente, uma enorme fatia da população empurrada para moradias precárias em morros e beiras de córregos e represas. O que haveria de surgir do outro lado da equação? Água sem ter para onde correr e famílias sem ter para onde ir.
Recentemente, porque passou a chover mais e em períodos concentrados, esse coquetel do desastre ficou ainda pior. Quem está pagando a maior conta são as brasileiras e os brasileiros em situação social mais vulnerável – em sua maioria, famílias negras prejudicadas por políticas sociais cruéis desde o Brasil Colônia. É na quebrada, na favela ou na zona semi-rural de pouca infraestrutura pública que, literalmente, a casa cai.
E só para não deixar passar em branco (trocadilho intencional), houve quem dissesse, em um acalorado debate depois dos temporais de janeiro deste ano no Rio de Janeiro, que racismo ambiental nem existe. Basta ler o perfil das pessoas que perderam suas vidas para suspeitar que exista um padrão social e racial evidente nessas mortes. Nesta reportagem da Carolina Pimentel na Agência Brasil, pesquisadores explicam bem claramente como o racismo ambiental e as enchentes se relacionam.
Medidas inéditas para cenários inéditos
Se já era absurdo que os governos não fizessem nada para proteger a população das chuvas extremas quando as tragédias eram previsíveis, a inação ficou criminosamente irresponsável neste momento em que as surpresas com a intensidade da chuva estão ficando mais comuns. A era do “Todo ano é a mesma coisa” acabou. Mudamos para pior. Agora é: “O que será que este verão nos reserva?”.
Para conter a crise climática e preparar nossas cidades para os temporais, precisamos participar de ações que pressionem os governos do Brasil, de outros países e dos nossos estados e municípios a agir em defesa da população, especialmente das pessoas mias vulneráveis. São fundamentais medidas como:
a) Promover a transição energética justa.
A crise climática é causada, principalmente, pela queima de petróleo, gás e carvão. É perfeitamente viável e bastante vantajoso para toda a sociedade substituir esses combustíveis fósseis pelas energias renováveis. Um dos benefícios da troca é justamente limitar os extremos climáticos que tanto nos assustam.
O Brasil tem a chance de liderar o mundo nessa agenda nos próximos dois anos: em 2024, quando presidirá o G20, reunião dos governos dos 20 países de maior economia, e em 2025, como anfitrião e presidente da COP30. O empenho do governo brasileiro para fazer avançar a transição energética, nesses dois espaços de articulação, pode salvar milhares de vidas no país e no mundo.
b) Melhorar as políticas habitacionais e urbanas.
Ouvir a população das periferias e aprender com os erros que cometemos há décadas é fundamental. Não adianta empurrar todo mundo para áreas de risco, uma hora a conta chega. Precisamos garantir moradia digna, com infraestrutura pública e em áreas seguras.
c) Implantar medidas de adaptação à crise climática nas cidades.
Experiências positivas ao redor do mundo mostram que há caminhos para reduzir os impactos dos extremos climáticos. Alertas antecipados sobre quando e como é preciso evacuar um local, por exemplo, ajudam a evitar mortes. Limpar calhas de rios, ampliar as áreas verdes, que absorvem melhor a água da chuva, e preservar a saúde da vegetação urbana, para reduzir os risco de queda de árvores durante tempestades, são só alguns exemplos do que governo locais podem fazer.
O financiamento a essas medidas costuma ser um gargalo para sua implantação, por isso, é importante que o governo brasileiro apoie estados e municípios nessa área. Por causa de sua responsabilidade histórica no agravamento da crise climática, os países ricos também têm a obrigação de financiar medidas de adaptação a eventos extremos no Sul Global, o que abrange ações de intervenção nas cidades. Precisamos manter a pressão sobre Estados Unidos, Canadá, União Europeia, Japão, Austrália e outros países desenvolvidos, para que de fato desembolsem esses recursos e para que a gestão da transferência desses recursos seja justa e eficiente.
Estamos vivendo uma era de cenários climáticos inéditos. Se não nos mobilizarmos para exigir ação climática imediatamente, as cenas de tragédia que marcam nossos verões podem ficar ainda mais assustadoras.
Fico pensando no futuro e imaginando que a conversa que eu adoraria escutar daqui a algum tempo, a cada chegada do verão, seria algo do tipo: “Lembra de quando morria gente por causa dos temporais? Que bom já não é assim!”. Será que vou chegar a ouvir isso?
- Peri Dias é gerente de Comunicação da 350.org para a América Latina