Artigo de Márcio Astrini*, Nicole Oliveira** e Carlos Rittl*** publicado no Blog do Planeta

Até mesmo para um governo orgulhoso de sua impopularidade, como o de Michel Temer, a Medida Provisória 795 é difícil de entender. A proposta que o Planalto e seus aliados tentam aprovar a toque de caixa no Congresso não faz nada menos do que estender de forma inédita as isenções fiscais já bastante generosas para a indústria do petróleo, levando o país a uma perda de arrecadação de centenas de bilhões de reais. Isso no exato momento em que o presidente se esforça para convencer a população de que tirar dinheiro de aposentados é uma medida necessária para “botar o Brasil nos trilhos”.

A chamada “MP do Trilhão” passou na Câmara na madrugada do último dia 6 e seguiu para o Senado, onde deve ser votada nos próximos dias. É um presente de Natal para o setor fóssil de fazer inveja a Donald Trump: até 2040, todo o dinheiro investido em produção de óleo poderá ser deduzido da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido e do Imposto de Renda de pessoa jurídica; além disso, a importação de equipamentos para o setor passa a ser livre de impostos. A renúncia fiscal total em 25 anos – seis mandatos presidenciais – depende das premissas adotadas no cálculo. As estimativas mais conservadoras falam em cerca de R$ 300 bilhões, mas, como ela não afeta somente os campos do pré-sal, pode ultrapassar R$ 1 trilhão.

Seja qual for o montante final, trata-se de uma transferência de renda do contribuinte brasileiro para empresas privadas como “nunca antes na história deste país”. Para efeito de comparação, o governo quer economizar em dez anos R$ 480 bilhões com a polêmica reforma da Previdência.

Em duas canetadas, as multinacionais petroleiras, que vêm enfrentando sérios problemas para expandir seu portfólio em diversos países do mundo, ganharam as reservas (com a decisão anterior do governo de quebrar o monopólio da Petrobras no pré-sal) e os incentivos tributários para vir para o Brasil. Não é à toa que o país vem sendo propagandeado como o novo darling do setor no mundo, com promessas de investimentos fabulosos e receitas idem.

Tem-se, então, o governo brasileiro escolhendo a dedo um setor da economia para brindá-lo com centenas de bilhões de reais do contribuinte diante da promessa de um pote de ouro do outro lado. Se você acha que já viu esse filme antes, é porque viu: a lógica usada por Michel Temer, Henrique Meirelles e a turma do laissez-faire instalada no governo federal é a mesma aplicada pela “intervencionista” Dilma Rousseff em sua política de desonerações. Como todos sabemos, o que havia dentro do pote na época não era ouro, mas algo com um cheiro bem diferente – os setores beneficiados demitiram e cortaram investimentos, e o fosso fiscal nacional aumentou.

Uma das diferenças entre um caso e outro é que, na época, desconfiávamos de que uma hora o dinheiro acabaria; agora temos certeza de que ele já acabou. Segundo uma análise da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara, somente entre 2018 o governo deixará de arrecadar, caso a MP 795 seja aprovada, R$ 16,37 bilhões. Considerando que o Executivo recentemente precisou pedir autorização ao Congresso para aumentar o limite de déficit em R$ 20 bilhões na Proposta de Lei Orçamentária para o ano que vem, os consultores da Câmara expressaram “dúvidas sobre a capacidade do erário em absorver mais esse pacote de incentivos sem que isso venha ensejar futuras alterações nas metas de resultado fiscal”.

Será que o setor de óleo e gás precisa mesmo de tanto mimo? Em entrevista recente a Roberto D’Ávila, o presidente da Petrobras, Pedro Parente, afirmou que o pré-sal é “uma das três melhores áreas do mundo” em termos de custo de produção, a US$ 7 o barril. Se é tão barato e mesmo assim precisa de incentivos tão grandes é porque, numa hipótese extremamente benevolente, o governo gostaria apenas de fazer um “saldão” desse óleo e vê-lo fora do subsolo o mais rápido possível. E isso nos traz a outro problema insanável da MP do Trilhão: além de uma bomba fiscal, ela é uma bomba climática.

O Acordo do Clima de Paris, de 2015, estabelece que o mundo precisa limitar o aquecimento global bem abaixo de 2 graus Celsius e fazer esforços para limitá-lo em 1,5 grau. Esses dois números botaram uma etiqueta de validade na indústria do petróleo no mundo, já que, para cumprir qualquer uma dessas metas, a maior parte do óleo do planeta precisará permanecer inexplorada – o que significa abandonar esse combustível antes do meio do século. O presidente da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), Décio Oddone, mostrou que entende bem essa equação ao afirmar num discurso em setembro: “Vai sobrar óleo no mundo. Esperemos que não seja o nosso”.

Ocorre que, se o “nosso” petróleo sair todo do chão, boa parte da humanidade está condenada a cozinhar com as mudanças do clima. O pré-sal contém cerca de 75 bilhões de toneladas de gás carbônico. Isso corresponde a 18% de tudo o que a civilização ainda pode emitir se quiser estabilizar o aquecimento global em 1,5 grau. Trocando em miúdos, o Brasil pode, sozinho, mandar para o vinagre a chance de evitar os piores efeitos do aquecimento da Terra.

Isso, claro, se houver alguém para comprar o petróleo do pré-sal no futuro. A revolução dos carros elétricos começa a acelerar no mundo todo, o que já fez alguns analistas projetar um pico na demanda mundial por óleo em 2020 e uma inversão na frota global em 2035, com mais elétricos do que carros a combustão interna nas ruas. Bancos na Europa já vêm advertindo há dois anos contra o risco de “encalhe” de ativos fósseis. Mais um movimento nesse sentido foi dado em novembro, quando o fundo soberano da Noruega – montado, veja só, com royalties de petróleo – anunciou que fará um desinvestimento maciço em empresas de óleo e gás.

Cercado por todos os lados, o capital petroleiro tende a tentar ganhar sobrevida se refugiando em países com boas reservas, baixo risco e políticos dispostos a entregar o patrimônio sem pensar em seus cidadãos. O Brasil reúne esses elementos como poucos. Ao estender o tapete vermelho do estímulo fiscal às petroleiras, quiçá esperando que elas saibam demonstrar sua gratidão, o governo Temer torna o país uma destinação barata para a indústria do petróleo curtir seus últimos anos de farra.

O problema (mais um) é que, se os analistas estiverem certos, as isenções oferecidas pelo Brasil podem durar mais tempo do que a vida do setor. Isso significa que os investimentos e empregos prometidos em troca de renúncia fiscal, poluição e potenciais acidentes nunca virão. Como só acontece com países de Terceiro Mundo, uma casta se beneficiará de uma indústria decadente, que deixará em alguns anos o país na miséria generalizada e um monte de ferro velho boiando no mar. Como o petróleo do pré-sal, a MP 795 estaria melhor se permanecesse enterrada.

*Márcio Astrini é coordenador de Políticas Públicas do Greenpeace
**Nicole Oliveira é diretora da 350.org Brasil e América Latina
***Carlos Rittl é secretário-executivo do Observatório do Clima