A crise do clima é o principal desafio de nossa era. E como consequência direta das alterações climáticas, a falta d’água também se tornou um dos principais problemas da atualidade. Diversas regiões do planeta têm sido cada vez mais assoladas por secas severas. Como agravante, o mau tratamento e o gerenciamento inadequado desse escasso recurso pelos governos locais têm deixado milhares de cidades ao redor do mundo em situação de alerta.

Soma-se a isso o impacto causado por empresas ligadas à geração de energia a partir de fontes fósseis, que não raro contaminam rios e reservas subterrâneas, além de fazerem uso de enormes quantidades de água potável em suas atividades. Água esta que, em situação de escassez, deveria estar sendo prioritariamente utilizada para consumo humano e animal.

No Brasil, a região mais gravemente afetada pelas mudanças no clima é o semiárido nordestino. Segundo dados do IPCC, a temperatura na região, que já sofre historicamente com secas periódicas, deve aumentar de 2°C a 5°C até 2100 com o agravamento do aquecimento global. Segundo projeções, um total de 1.488 cidades brasileiras e 36 milhões de pessoas – ou ⅕ da população – serão diretamente afetadas pela falta d’água em um futuro muito breve. O Ceará, prova viva dos impactos reais que já vêm acontecendo, vivencia a maior sequência de secas jamais vista no estado nos últimos seis anos. Isso movimenta uma engrenagem viciosa que preocupa os moradores locais.

“O impacto maior aqui na região é com certeza a escassez hídrica, que por sua vez gera impactos diretos na economia e na saúde. O aumento de temperatura, aliado a uma taxa pluviométrica menor, faz com que os reservatórios superficiais sequem mais rápido, acabando com a fonte principal de abastecimento humano. As estações de tratamento param de funcionar e a população passa a depender dos carros-pipa, que além de caros ao governo, não garantem a qualidade da água”, afirma Nicolas Fabre, assessor de Desenvolvimento Rural e Meio Ambiente da Associação dos Municípios do Estado do Ceará (Aprece).

Segundo ele, o problema é a distribuição das chuvas no tempo e no espaço. “Alguns municípios recebem em um dia a metade do volume de chuva previsto para o ano inteiro, e no outro estão completamente secos. Eles declararam estado de emergência por conta das enchentes, e seis meses depois decretam emergência por conta da seca. Essas chuvas torrenciais causam assoreamento dos rios, o que reduz a capacidade de armazenamento de água nos mesmos, uma vez que ficam cheios de areia e sedimentos”, relatou.

Isso sem mencionar as consequências para a agricultura. Há alguns anos, o Ceará tinha se tornado o primeiro estado produtor de tilápia em açude do país. Hoje, nem aparece mais nas estatísticas. “Não tem água nos açudes, não tem peixe. O produtor familiar e o pescador artesanal têm que voltar a recorrer a auxílios governamentais, e as tendências de desemprego e pobreza voltaram a subir.” Para Fabre, o governo gasta dezenas de milhões de Reais com programas sociais, quando poderia estar investindo em políticas de fomento a tecnologias para resiliência e adaptação, ou mesmo em ações de combate direto às mudanças climáticas.

Ao comprometer a disponibilidade hídrica, a desertificação afeta não só o consumo de água potável, como reduz a produtividade agrícola, ameaça a segurança alimentar e impacta a produção de energia hidráulica, principal fonte para geração de energia elétrica do país. Com os reservatórios das hidrelétricas vazios, o governo, por falta de amplo investimento em outras fontes renováveis, se vê obrigado a acionar as usinas térmicas movidas a combustíveis fósseis, que além de mais poluidoras ainda possuem um custo maior de operação.

As térmicas, por sua vez, precisam de muita água para operar. Assim, além de pagar mais pela energia utilizada em suas casas, a população ainda vê a pouca água potável que lhe resta ser desperdiçada no processo de geração de energia.

É o caso do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP), localizado na Região Metropolitana de Fortaleza, no Ceará. Pecém I e II são as duas maiores térmicas movidas a carvão do país e têm autorização do governo estadual para captar do Açude Castanhão até 800 litros de água por segundo (ou 70 milhões de litros por dia), o que daria para abastecer uma cidade de 600 mil habitantes.

Maior reservatório público do país para usos múltiplos, o Castanhão é normalmente responsável pelo abastecimento de toda a região periférica da capital, onde vive quase metade da população do estado. Em novembro passado o reservatório atingiu seu volume morto e deixou de abastecer a capital cearense por mais de 20 dias. Com o Castanhão vazio, o governo começou a explorar outras áreas, inclusive Áreas de Preservação Ambiental, como o Lagamar do Cauípe, onde vivem e da qual dependem comunidades indígenas e ribeirinhas.

No final de 2017, moradores do município de Caucaia e o povo indígena Anacé da Barra do Cauipe foram surpreendidos quando um grupo de operários, acompanhados por policiais, iniciaram operações de retirada de água do Lagamar do Cauípe. Com apoio de movimentos populares e organizações civis, lideranças Anacé conseguiram uma liminar da Justiça estadual determinando a interrupção das obras para retirada de água da região para abastecer o Complexo do Pecém. O empreendimento, que visa extrair 200 litros de água por segundo da área, pode comprometer o já parco reservatório hídrico da região.

“Numa das piores crises hídricas do estado, o governo está permitindo que a água, que deveria ser para consumo prioritário da população, seja desviada para atender a interesses industriais. Eles entram sem pedir licença, sem consultar as comunidades tradicionais que vivem ali. Isso acirra ainda mais a guerra por água na região”, denuncia o cacique Roberto Marques, liderança do povo indígena Anacé.

Além de sua importância ambiental, o Lagamar do Cauípe também é fundamental para a subsistência das comunidades locais e para a manutenção das atividades pesqueira e turística da região. Isso sem falar na questão cultural e espiritual. “Para nosso povo, nossos antepassados, os ‘encantados’, ainda vivem na lagoa do Cauípe. Mas junto com a água eles também podem desaparecer. Se o governo quer dessa forma matar a nossa terra, então vai nos matar também. Pode já estar tudo perdido, mas nós vamos perder lutando.”

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