Caso estiagem continue, reservatórios podem secar por completo entre outubro e novembro, diz professor da Unicamp
Torneiras vazias, caminhões-pipa nas ruas, banhos de caneca, estocamento de água, inflação de preços, poços artesianos. Parece distante, mas esse cenário pode vir a fazer parte do cotidiano de muitos paulistanos caso as previsões mais pessimistas acerca do desabastecimento dos sistemas Cantareira e Alto Tietê sejam confirmadas, de acordo com especialistas ouvidos pelo iG.
Responsáveis pelo abastecimento de mais de 10 milhões de pessoas somente na região metropolitana de São Paulo, os dois sistemas vêm quebrando seguidos recordes de volume negativo nos últimos meses. Principal reservatório com o recurso disponível para os habitantes da capital, a Cantareira registrou, na quinta-feira (17), apenas 17,8% de volume armazenado – todo ele vindo de seu volume morto, aquele localizado sob o nível das comportas dos reservatórios, cujo bombeamento foi iniciado há menos de três meses com vistas a durar até março. Com registro de mais de 40% de volume disponível até fevereiro, quando passou a abastecer parte da população a fim de amainar a crise da Cantareira, o Alto Tietê não se encontra em situação muito melhor: tem 23,7% disponíveis.
Chefe do Departamento de Recursos Hídricos da Universidade de Campinas (Unicamp), o professor Antônio Carlos Zuffo calcula que, caso a estiagem nas regiões onde estão localizados os reservatórios permaneça nos próximos meses, ambos os sistemas podem secar por completo entre outubro e novembro. Assim, a população paulistana e das cidades que deles são dependentes se verá em uma realidade há pouco impensada para os grandes centros urbanos do Estado, necessitando lidar com uma crise cotidiana que poderia ter sido evitada caso medidas de emergência, como racionamentos, fossem implementadas pelo governo estadual. “O que pode ocorrer é a população em geral ficar sem abastecimento, com as torneiras secas, e talvez, em alguns dias da semana, parcialmente atendida por um serviço público de transporte de água por meio de caminhões.
Mas esses veículos, com recursos vindos de produtores da própria região, possivelmente poderiam oferecer uma média de apenas 30 litros diários por habitante – sendo que o normal são 200 litros”, analisa Zuffo. “Poderia se apelar também para a construção de poços, mas São Paulo tem um terreno rochoso, não armazena água subterrânea: os recursos destes seriam apenas das perdas físicas originadas das falhas na distribuição dos sistemas e, com os reservatórios secos, elas deixariam de existir. Então, caso aconteça de termos muitos dias sem água, seria até recomendável fazer um estoque para as necessidades mais básicas, como cozinhar, lavar pratos e roupas. Além da redução do volume de água para o banho, talvez com uma caneca.” A situação é realmente grave e não envolve apenas os riscos de ausência do recurso para uso doméstico. Segundo Zuffo, antes de a população ficar sem água devem ser suspensas as outorgas para seu uso aos agricultores da Reserva da Biosfera do Cinturão Verde de São Paulo, que abrange 73 municípios em torno da capital, e às indústrias.
A consequência disso seria um desabastecimento de certos produtos, como hortaliças, e demissões em massa de funcionários. A bola de neve prossegue: com o desemprego aumenta a violência; sem água, instituições de ensino e centros de compras fecham as portas; logo, a falta de higiene também faz surgirem as doenças. “Por esse motivo que muitos técnicos insistem no que o racionamento de água já deveria ter sido adotado há muito tempo, pois as consequências de um desabastecimento de água são muito danosas. E qualquer solução de engenharia levaria a de cinco a dez anos para ser concluída. É muito tempo para se esperar. Muitas indústrias deixariam a região, e com elas iriam os bons empregos”, resume ele.
Como tem sido desde que ficou escancarada a crise nos sistemas, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), gerida pelo governo estadual, mantém o discurso de confiança nas forças da natureza. Historicamente, é entre os meses de setembro e outubro que volta a chover nas regiões dos reservatórios, o que teoricamente levaria o volume atualmente disponível no Cantareira, por exemplo, a durar tranquilamente até março, quando as precipitações já teriam cumprido o seu papel de normalizar os mananciais, segundo a empresa. Mas o clima não tem sido favorável: assim como ao longo de quase todo o ano, no mês passado as precipitações foram brutalmente inferiores à média do período – mais de três vezes menores.
Além disso, a previsão de precipitação para o futuro próximo não é nada positiva. Segundo a meteorologista Helena Balbino, do Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), até o final da próxima semana só deve chover nas regiões do sistema, e de forma pouco considerável, nesta sexta-feira (18). Além disso, análises mostram que as temperaturas das águas do Oceano Pacífico vêm aumentando, o que sugere a presença do fenômeno El Niño, responsável por bloquear as frentes frias mais ao sul do País, o que impede suas chegadas às regiões dos reservatórios paulistas – podendo afetar toda a expectativa da Sabesp. “Se essa condição for mantida nos próximos três meses, a situação de estiagem no sudeste deve permanecer como está, ou seja, sem chuvas”, diz Balbino.
De fato, afora o discurso garantindo uma situação sob controle, nem a Sabesp parece acreditar totalmente em suas previsões. Apesar de negar qualquer possibilidade de racionamento para os dependentes dos sistemas – o que na prática já vem ocorrendo em diversas regiões da Grande São Paulo -, em nota enviada ao iG a empresa afirma que tem estudado medidas para lidar com o problema. A primeira delas, anunciada em fevereiro, foi a de passar a oferecer desconto a clientes que reduzissem o consumo de água em 20%. “O balanço dessa ação atendeu às nossas expectativas: 87% da população abastecida pelo Sistema Cantareira aderiram ao programa de bônus, sendo que 55% alcançaram as metas de diminuição de consumo, recebendo desconto na fatura de água”, afirma. No entanto, a diminuição é irrisória tendo em vista o tamanho da crise. Assim, a empresa já assume a aplicação de outras medidas. Uma delas é, a partir de setembro, remanejar a água excedente do Sistema Rio Grande (Represa Billings) – onde o volume hoje é de 89,5% – para a região do Alto Tietê, produzindo 500 litros por segundo a mais de água para seus clientes. A partir de outubro, cerca de 1.000 litros por segundo de água do Sistema Guarapiranga também devem ficar disponíveis para compensar o déficit, diz a empresa. A Sabesp também tenta autorização para ampliar o uso da reserva técnica do Cantareira – eram 400 bilhões de litros, dos quais 182,5 bilhões já foram bombeados para o sistema -, até dois meses atrás exaltada como suficiente para evitar racionamentos.
“Mas a utilização do volume morto restante significaria que, caso as chuvas previstas para o final do ano sejam menores do que a média histórica, iniciaremos janeiro com volumes negativos, em uma situação muito pior aos 27% positivos com que começamos 2014”, analisa Zuffo. “Quanto às outras medidas, a informação é de que a Sabesp aumentaria a captação de outros três sistemas e que todos juntos forneceriam uma vazão de 2 m3/s, equivalente à metade da consumida pela cidade de Campinas. Isso é, atenderia a uma população de apenas 500 mil pessoas, insuficiente para toda a demanda.” Outra possibilidade em estudo pela Sabesp é a retirada de um suposto volume morto localizado no Sistema Alto Tietê, cuja atual situação já foi contestada até pelo Ministério Público de São Paulo, que abriu inquérito civil no final do mês passado para investigar uma possível ingerência de seus cinco reservatórios (Ponte Nova, Jundiaí, Taiaçupeba, Biritiba e Paraitinga). Mas, segundo o professor José Roberto Kachel, que foi funcionário da empresa por mais de três décadas, o tal volume morto parece nem existir. “Eu conheço bem esse sistema. Trabalhei lá por mais de dez anos e é muito você dizer que ali existam 20 milhões de metros cúbicos, o que duraria no máximo 20 dias. Ou seja, uma obra para essa retirada seria tão cara e complicada que nem compensaria ser feita”, analisa. “O sistema Cantareira ainda tem suas reservas, deve escapar do colapso. Vai ser um inferno para recuperar, mas a possibilidade é grande.
Agora, o Alto Tietê, se esvaziar, a situação complica de verdade. E as consequências para a população vêm em uma questão de poucas horas. Quase imediatamente não haveria água saindo das torneiras daqueles que dependem dele.” Enquanto Zuffo acredita em soluções – improvisadas, é verdade – para evitar um total desabastecimento para os clientes dos reservatórios, Kachel é ainda mais pessimista em relação ao tema. Para ele, o uso de caminhões-pipa para uma grande população é totalmente inviável, não só pela ausência de um montante tão grande de veículos em relação à demanda como por simplesmente não haver de onde captar tanta água para ser transportada.
Guardar o recurso tampouco seria uma solução, apenas uma medida desesperada, já que “não existe nenhuma possibilidade de se conseguir armazenar 30 ou 40 metros cúbicos (1m³ = mil litros) de água em uma residência”. “Nunca vi nada parecido em meus 34 anos de Sabesp. E, agora que estou aposentado, tem me apavorado muito a possibilidade de os reservatórios secarem, enquanto o governo fica com papo furado, tratando a todos como se fossemos idiotas”, diz. “Sinceramente, não tenho a mínima ideia do que a população poderia fazer caso essa seca realmente acontecesse. Entendo de captar água, tratar, reservar, distribuir. Agora, se não tem água, é difícil até de pensar. Rezo para que a Sabesp esteja certa.”
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