Durante sete dias o gestor ambiental e campaigner Renan Andrade atuou avaliando os impactos socioambientais e também prestando solidariedade aos atingidos pelo rompimento de uma barragem da Vale no Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), no dia 25 de janeiro, causando 150 mortes confirmadas e 182 pessoas desaparecidas, de acordo com dados fornecidos pela empresa. Para ele, os danos causados são irreparáveis e, para tentar restabelecer a região a união entre organizações internacionais e locais é essencial. “(As organizações) devem estar lado a lado compondo as fileiras de lutas (…) cobrando posturas adequadas dos poderes públicos e da própria empresa”, conta. Para entender melhor a ação realizada no local, confira a entrevista a seguir:
Como campaigner, quais são suas principais atividades?
Dentro das minhas atividades está previsto organizar campanhas informativas, bem como ministrar cursos, treinamentos, oficinas, palestras e atuar na mobilização de atores sociais, instituições públicas e privadas na busca do desenvolvimento sustentável e autônomo das comunidades.
Você passou cerca de uma semana alocado na cidade, em contato com as pessoas que foram atingidas direta e indiretamente pelo crime socioambiental de Brumadinho (MG). Como você avalia a situação socioambiental da região?
Sobre os aspectos socioambientais, pude observar que economicamente a cidade tornou-se muito dependente da mineração e que as pessoas da região sofrerão significativamente os impactos da paralisação das atividades por causa da irresponsabilidade da empresa – tanto os mais de 4 mil funcionários empregados na mineradora e terceirizados quanto o comércio, prestadores de serviços, entre outros. Ou seja, toda uma cadeia produtiva e de consumo será afetada e o tempo para se recompor não será curto – dependendo muito da mobilização por parte da sociedade civil organizada e também por parte da Vale – responsável pelo crime, e pelo governo – que corroborou para que isso acontecesse.
No aspecto cultural, são perdas irreparáveis. Centenas de famílias perderam tudo o que tinham – casas, fotografias, modo de vida – e isso é imensurável. Sem dúvidas, trará consequências terríveis para a saúde mental dessas vítimas. Outro fator importante é que comunidades tradicionais como os indígenas Pataxós Hã-hã-hãe, que vivem às margens do rio Paraopeba, perderam sua principal fonte de subsistência, não só fisiológica, mas também cultural, pois dependiam do rio para rituais que fazem parte da sua cultura milenar.
“Toda uma cadeia produtiva e de consumo será afetada e o tempo para se recompor não será curto – dependendo muito da mobilização por parte da sociedade civil organizada”
Já sobre os aspectos ambientais, também são perdas irremediáveis. Algumas instituições que fizeram análises científicas do Rio Paraopeba por exemplo, já decretaram a morte do rio – o que nos mostra que milhares de peixes estão condenados, assim como pescadores que dele dependem, além de macro e micro invertebrados que mantém controle biológico de centenas de vetores, que em um futuro próximo poderão trazer epidemias de doenças tropicais já controladas.
Levando o prisma para a flora local, são milhares de exemplares que foram destruídos pelo tsunami de lixo tóxico contaminado (rejeitos). Estes exemplares, além da manutenção de ciclos hidrológicos e captura de dióxido de carbono (Co2) da atmosfera serviam de corredores ecológicos – garantindo fluxo gênico de espécies e abrigo para a fauna que, por sua vez, exerce papel fundamental em todo um ecossistema. Quando há um descontrole populacional de toda essa biodiversidade, consequências relativas ao solo e ao clima poderão ser irreversíveis para a agricultura familiar – responsável por 70% da comida que chega a mesa dos brasileiros e brasileiras, e ainda para o aceleramento das mudanças climáticas.
Em sua visão, de que forma uma organização não governamental internacional como a 350.org pode auxiliar em tragédias como a de Brumadinho (MG)?
As ONGs têm garantido toda uma estrutura para que as comunidades atingidas não fiquem a mercê de governos e empresas que, em conluio, violam direitos humanos e ambientais. Elas têm exercido um papel fundamental – auxiliando na transparência das informações, dando voz aos atingidos e também dando apoio técnico, administrativo, jurídico e humanitário às organizações locais. O empoderamento dessas organizações locais deve ser o norte que as internacionais sérias devem buscar para a construção coletiva de uma sociedade autônoma e sustentável. Pelo que tenho visto em Brumadinho (MG) isso tem acontecido de forma muito efetiva.
“Essa sensibilidade aflora quando me deparo com injustiças cometidas e se transforma em indignação, força e coragem para ajudar a defender quem não pode se defender sozinho”
Existe alguma forma de amparar e retomar as atividades da cidade?
Entendo que sim, mas não seguindo este mesmo modelo estabelecido de mineração. Um problema não pode ser resolvido pela mesma mentalidade que o criou – partindo desta perspectiva, toda a estrutura de visão e política empresarial deve ser substituída e a participação da comunidade do entorno deve ser efetiva nas tomadas de decisões. E ainda, outras formas de diversificação da economia devem ser estimuladas, para que as comunidades tenham autonomia e não fiquem dependentes de uma empresa que já ganhou o “prêmio” de pior empresa do mundo pela notória violação dos direitos humanos e que tem em seu currículo milhares de vidas ceifadas e a destruição da natureza como alicerce para garantir lucro para seus acionistas.
Muitas pessoas estão sendo auxiliadas na região neste momento, mas existem grandes preocupações acerca das medidas que seriam tomadas a longo prazo. O que pode ser feito para que o episódio não seja esquecido?
Como disse anteriormente, o empoderamento das organizações locais é fundamental, pois a partir de agora, a empresa aciona um protocolo para desmobilizar as forças populares que agem contra seus interesses, assim desarticulando movimentos socioambientais e cooptando lideranças locais para desestabilizar as lutas incorporadas. As organizações internacionais devem estar lado a lado compondo as fileiras de lutas com as organizações locais de base – que estão e estarão cobrando posturas adequadas dos poderes públicos e da própria empresa –, como o “Movimento Águas e Serras de Casa Branca-Brumadinho” e “Justiça nos Trilhos” que há muito tempo vem denunciando os desmandos, incompetência e inoperância da Vale em todo o país e fora dele. Enfim, “ninguém solta a mão de ninguém”.
Vocês campaigners vem acompanhando diversos crimes e acidentes socioambientais, inclusive alguns que tiveram uma menor repercussão (como o vazamento da Transpetro, plataformas de pré-sal e fracking). Existe alguma diferença no trabalho realizado?
Existe diferença no ponto de vista de atuação. Nos casos dos vazamentos da Transpetro e poços de fracking na Argentina são trabalhos mais técnicos de visita in loco e denúncias, nos quais entendemos a dimensão do ocorrido e mensuramos seus impactos na vida das pessoas e na natureza, para posteriormente cobrarmos das autoridades a reparação dos danos socioambientais.
Já no caso de Brumadinho, existe uma tragédia humana imensurável, que por meio dos relatos de populares atingidos, nos condicionam a uma carga emocional muito grande e pesada. Quando você vê um senhor sentado a beira da lama e pergunta pra ele “o que o senhor está fazendo aí?” e ele responde “estou esperando meu filho sair de baixo da lama” ou pergunta para uma senhora “a senhora perdeu alguém?” e ela responde “sim, minha filha, mas pra mim ela ainda está aqui, pois não vi o corpo dela” se cria uma grande diferença na atmosfera local. O que se pode fazer em casos como esse é levar solidariedade e força para quem está lá passando pelas dificuldades impostas pela irresponsabilidade da empresa.
Mas veja, se enxergarmos sob uma perspectiva de impacto socioambiental, a Vale, a Petrobrás e a YPF (na Argentina), são igualmente responsáveis por danos seríssimos independentemente de ocorrer uma tragédia ou não. Digo isso porque todas elas entram nos municípios por meio de concessão federal, e começam a operar sem considerar a economia local e a população que será diretamente afetada.
No caso do vazamento da Transpetro e das plataformas de Pré-sal, o afugentamento dos peixes afetou as comunidades muito antes do vazamento, e quando houve o vazamento, o preço da pesca caiu violentamente. Na Argentina, a região de Allen sempre foi tradicional em agricultura familiar mas hoje sofre com a operação de fracking. Os produtores não conseguem mais exportar para muitos países e há também muitos relatos de pessoas na comunidade com problemas graves de saúde por conta da contaminação da água de abastecimento local. Em todos os casos falamos de vidas. Vidas que são afetadas por essas operações. E a pergunta que fizemos para a Vale, fica para todas: “Quanto vale a vida? A vida dessas pessoas afetadas?”
Você acredita que alguns acontecimentos não ganham tanta atenção ou comoção?
Percebo que alguns acontecimentos não ganham a mesma atenção e comoção pelas peculiaridades de cada caso – e também quando envolve a perda de muitas vidas humanas. Naturalmente, muitas pessoas se colocam no lugar de quem está sendo vítima. As pessoas dificilmente vão se colocar no lugar de um peixe, por exemplo, infelizmente elas são insensíveis a isso. Quando há “apenas” impactos ambientais – fauna e flora e água – diretos e impactos humanos indiretos, as pessoas não tendem a se comover tanto, pois esse mundo moderno nos apartou da natureza. A sociedade não se entende como parte da terra, das águas e do ar, entendem isso como recursos para manter um padrão de vida acelerado e um consumo exacerbado. Não há tanta sensibilidade quando a natureza é maltratada, haja vista a incessante luta dos defensores de animais e ambientalistas. É a modernidade líquida, Bauman nos fala bem sobre ela.
Existe alguma relação entre esses trabalhos realizados?
Há uma relação sim entre eles. Tanto um quanto outro são deliberadamente violações dos direitos ambientais e humanos, cometidos por empresas que poderiam substituir tecnologias ultrapassadas por mais modernas a fim de minimizar – e até anular – os impactos socioambientais, criando Processos de Gestão Socioambiental participativos, nos quais a comunidade envolvida participe das tomadas de decisões. E aí encontramos outra relação, pois ambos os casos se baseiam em um modelo econômico exploratório, que vê a natureza e as pessoas como mera mercadoria para serem exploradas e destruídas em nome da acumulação de bens materiais de poucos – fator que tem nos levado a tragédias como essa, e se assim continuar, certamente nos levarão a outras.
O que motiva a organização, e você como campaigner, a realizar essas ações?
Estou há mais de 15 anos trilhando esse caminho. Talvez por ter sido nascido e criado no interior de Minas Gerais, em meio à cultura caipira – que valoriza tanto as pessoas quanto a natureza. Essa sensibilidade aflora quando me deparo com injustiças cometidas e se transforma em indignação, força e coragem para ajudar a defender quem não pode se defender sozinho. E a 350.org Brasil é uma instituição que conta com profissionais qualificados, que se preocupam com o bem comum, a autonomia das comunidades, a autossuficiência energética e luta contra as injustiças socioambientais. Isso motiva a seguir neste caminho, pois a instituição sabe do importante papel que exerce na vida das pessoas e na busca de um ambiente mais saudável, equilibrado e justo para toda a sociedade.
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Paulinne Rhinow Giffhorn — jornalista da Fundação Internacional Arayara e da Coalizão Não Fracking Brasil pelo Clima, Água e Vida (COESUS).
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