O Ceará tem vivenciado nos últimos anos a maior sequência de secas jamais vista no estado. Isso movimenta uma engrenagem viciosa que tem colocado a população em alerta geral. A falta de chuvas afeta não só o consumo de água potável, mas também a geração de energia. Com os reservatórios das hidrelétricas vazios, o governo é obrigado a acionar as usinas termelétricas movidas a combustíveis fósseis, que possuem um custo maior de operação, aumentando consequentemente o valor da conta de luz. As térmicas, por sua vez, precisam de muita água para resfriar as máquinas. Dado esse contexto, além de estarem pagando mais pela energia utilizada em suas casas no momento, os cearenses ainda estão vendo a pouca água que lhes resta ser totalmente consumida pelas térmicas do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP).
Pecém I e II são as duas maiores térmicas movidas a carvão do país e têm autorização do governo estadual para captar até 800 litros de água por segundo (ou 70 milhões de litros por dia) do Açude Castanhão, o maior reservatório público do país para usos múltiplos, responsável pelo abastecimento de toda a região metropolitana de Fortaleza, onde vive quase metade da população do estado. Segundo Alexandre Costa Araújo, professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e um dos fundadores do Fórum Ceará no Clima, esse tanto de água daria para abastecer uma cidade de 600 mil habitantes.
Há cerca de uma semana, o Castanhão atingiu o seu volume morto, termo utilizado quando o nível da água fica abaixo da captação normal. Em caso de escassez de água, a lei estadual de recursos hídricos prevê a suspensão das outorgas às empresas operadoras das usinas, sem que haja indenização à mesmas. Apesar disso, elas seguem operando e consumindo toda a já escassa água da região. A população local tem se mobilizado e denunciado o descaso do governo estadual, acusando-o de piorar a situação das comunidades em benefício das empresas operadoras do complexo.
“A conjunção da seca recorde devido às mudanças climáticas com o consumo absurdo dessas empresas colocou o Ceará em situação de colapso hídrico. E ao invés de desligar as termelétricas para assegurar a prioridade do abastecimento humano, o governo vem secando uma após outra as fontes de água locais. Começou com o Açude Sítios Novos, construído especificamente para abastecer o completo, depois o Castanhão, e agora querem detonar o Lagamar do Cauípe, uma zona de beleza natural formidável. Não podemos chamar essa atitude de outra coisa senão criminosa”, defendeu Alexandre Costa.
Esgotamento dos reservatórios e resistência local
Lagamar do Cauípe é uma Área de Preservação Ambiental (APA) onde, segundo relatos, há presença de comunidades ribeirinhas e até indígenas, como do povo Anacé. Paulo Rubens, presidente da Associação Comunitária do Cauípe, afirma que já há um projeto sendo colocado em prática no local para retirada de 200 litros de água por segundo. “O governo tem se preocupado em satisfazer as grandes empresas que consomem muita água e não com quem precisa de água para viver. Enquanto elas gastam, nós não temos nem para beber. Nenhum desses empreendimentos foi feito pensando no desenvolvimento sustentável da região. Não houve audiências públicas ou debate com a população”, atestou.
O cacique Roberto Anacé confirmou que não houve qualquer tipo de consulta, o que fere direitos nacionais e internacionais, como os previstos na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Juntar um grupo que só representa um tipo de interesse não é consulta. Toda a população precisa ser alertada do que está se passando. Eles têm que mostrar o que está ocorrendo no interior do estado, onde já está praticamente tudo seco. Está havendo ameaças, brigas por conta da água. Isso é o que vai acontecer aqui no litoral também caso o governo permita que essa situação continue”, alertou a liderança.
Na última segunda-feira aconteceu em Siupé, município de São Gonçalo, região metropolitana de Fortaleza, uma grande mobilização da população local afetada pela crise hídrica. Pescadores, agricultores, líderes religiosos e comunitários, associações e educadores reuniram-se para discutir ações para defender o direito à água e a preservação dos mananciais da região. A comunidade decidiu se posicionar de forma contrária à perfuração de 35 poços profundos que serviriam para abastecimento das usinas de Pecém. Segundo o movimento Ceará no Clima, estiveram presentes cerca de 600 pessoas. Na próxima sexta-feira (24) será realizada uma audiência pública para discutir os impactos socioambientais do complexo Pecém e do projeto de abertura dos poços para extração de água.
Para o professor Alexandre Costa, a situação atingiu um quadro de calamidade completa, com desalojamento de pessoas, perdas na agricultura familiar, na pesca artesanal, no turismo comunitário e no comércio local, além de outros prejuízos ao meio ambiente e à população. “Nós do Ceará no Clima defendemos há muito tempo o desligamento das termelétricas. Ninguém defende localmente essa energia. O estado não pode entrar em colapso para manter um complexo energético altamente poluente, que emite 7 milhões de toneladas de CO2 por ano, 1/4 das emissões de todo o estado. Esse modelo de ‘desenvolvimento’ é pura terra arrasada. A ação direta é a forma legítima de resistência que ainda nos resta para garantir nosso direito básico à água”, finalizou.
Desde 2015, a 350.org e a COESUS – Coalizão Não Fracking Brasil pelo Clima, Água e Vida – se uniram ao movimento contra os combustíveis fósseis no Ceará, apoiando e realizando audiências, palestras e espaços de debate entre as comunidades locais e as autoridades municipais e estaduais, levando conhecimento e informação à população. “Nos solidarizamos com a luta dos cearenses, marcharemos junto com eles, como já fizemos outras vezes, e faremos o que estiver ao nosso alcance para barrar Pecém e outros projetos que afetam as pessoas e o clima do estado e de todo o planeta”, defendeu Nicole Figueiredo de Oliveira, diretora da 350.org Brasil e América Latina.