No Brasil, a região mais fortemente impactada pelas mudanças climáticas é o semiárido nordestino, mas a escassez hídrica não é exclusividade de regiões mais secas. (Foto: Divulgação Fórum Alternativo Mundial da Água).

Por Nathália Clark e Nicole Figueiredo de Oliveira*

A falta d’água tornou-se um dos principais problemas urbanos do nosso tempo. Comunidades em diversas partes do mundo estão sob forte pressão, enfrentando o adensamento constante da escassez hídrica.

Em muitas regiões, a situação ainda é agravada pela má gestão e pelo tratamento inadequado por parte dos governos locais, e pela negligência de empresas que utilizam o recurso para fins industriais.

Setores como o agronegócio, mineração e de geração de energia através de combustíveis fósseis não só fazem uso de grandes quantidades de água limpa em suas operações, como não raro eliminam efluentes tóxicos que contaminam rios e reservatórios subterrâneos.

De anos para cá, com o regime de chuvas altamente impactado pelas mudanças climáticas em todo o planeta, áreas anteriormente “seguras” agora estão sob risco de ocorrência de secas severas.

No Brasil, a região mais gravemente afetada pelas alterações no clima é o semiárido nordestino. Segundo dados do IPCC, a temperatura na região, que já sofre historicamente com secas periódicas, deve aumentar de 2°C a 5°C até 2100. Parte do Estado da Bahia, mais especificamente, corre alto risco de desertificação nos próximos 30 anos.

Um estudo do Inpe apontou que as áreas suscetíveis à desertificação no Brasil correspondem a 1,3 milhão de km2. Ao todo, 1.488 cidades e 36 milhões de pessoas serão diretamente afetadas pela falta d’água em um futuro muito breve. Grande parte delas está na região nordeste, que curiosamente também concentra o maior potencial do país para fontes renováveis.

Mas os brasileiros não estão sozinhos neste sombrio prognóstico. No mundo hoje, mais de um bilhão de pessoas não têm acesso à água e 2,7 bilhões sofrem com a escassez por pelo menos um mês ao ano. E as projeções não são otimistas. De acordo com as Nações Unidas, a demanda global por água doce superará a oferta em 40% até 2030, graças a uma combinação de mudanças climáticas, ação humana e crescimento populacional.

Ao comprometer a disponibilidade hídrica, a desertificação afeta não só o consumo de água potável, como também reduz a produtividade agrícola, ameaçando a segurança alimentar.

Outra implicação da seca facilmente negligenciada é o impacto cíclico sobre o fornecimento de energia. Com o esvaziamento dos reservatórios das usinas hidrelétricas – principal fonte para geração de energia elétrica no Brasil –, o governo, por falta de amplo investimento em outras fontes renováveis, se vê forçado a acionar usinas térmicas movidas a combustíveis fósseis.

As térmicas, por sua vez, emitem grandes quantidades de gases-estufa e ainda possuem um custo maior de operação, aumentando consequentemente o valor a ser pago pelo consumidor na conta de luz. Além disso, por gerarem energia a partir do calor, elas também necessitam de muita água para esfriar as máquinas.

Assim, a população não só tem de pagar mais pela eletricidade utilizada em suas casas, como também vê a pouca água que lhes resta ser desperdiçada no processo de geração de uma energia mais cara e mais poluente.

A crise hídrica, portanto, movimenta uma engrenagem viciosa que vai além da suficientemente grave falta de água para beber. É o caso atual do Ceará. Assolado nos últimos seis anos pela maior sequência de secas jamais vista, o estado tem vivenciado um contexto de disputa real por água.

Maior reservatório público do país para usos múltiplos, o Açude Castanhão, responsável pelo abastecimento de toda a região metropolitana de Fortaleza, onde vive quase metade da população do estado, atingiu seu volume morto em novembro passado e, há cerca de 10 dias, deixou novamente de abastecer a capital cearense, até que seja restaurado o volume mínimo de 173,34 milhões de m³ de água.

A Política Nacional de Recursos Hídricos determina que, em situação de escassez, a água deve ser prioritariamente utilizada para consumo humano e animal. A despeito disso, o governo estadual manteve a autorização para que as usinas Pecém I e II, as duas maiores térmicas a carvão do país, continuem captando do Castanhão até 800 litros de água por segundo (ou 70 milhões de litros por dia), o que daria para abastecer uma cidade de 600 mil habitantes.

A escassez hídrica, porém, não é exclusividade de regiões mais áridas. Capital financeira do Brasil e uma das 10 cidades mais populosas do mundo, São Paulo passou por situação de calamidade em 2015. A crise foi contornada em 2016, mas em janeiro de 2017 as reservas ficaram novamente abaixo do esperado, colocando em xeque o futuro do abastecimento de água no município.

Localizado sob os territórios do Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, o Aquífero Guarani, principal reserva subterrânea de água doce da América do Sul e uma das maiores do mundo, tem sido constantemente ameaçado por atividades exploratórias como o fracking, para extração do gás de xisto. Produzindo 50 quatrilhões de litros de água por ano, ele tem capacidade para abastecer 400 milhões de pessoas. Mas isso apenas se conseguir se manter livre de contaminação por substâncias químicas.

Precisamente por serem vulneráveis ​​e finitas, as limitadas fontes de água potável já têm causado sérias disputas geopolíticas. Sem uma mudança radical de comportamento, as guerras por acesso a esse valioso recurso serão inevitáveis.

A necessidade de mudança é urgente: devemos quebrar o ciclo de danos ambientais causado ​​pela indústria fóssil, fortalecer a governança sobre recursos naturais comuns – não apenas água, mas terra, cobertura florestal e também o ar –, com políticas públicas em todas as esferas de governo, e assegurar um futuro mais sustentável e justo, com energias renováveis, livres e acessíveis.

Ao sediar o Fórum Mundial da Água este mês, o Brasil tem nas mãos a oportunidade de protagonizar essa mudança. Mas para que o evento não seja apenas palanque para promessas governamentais vazias, a sociedade civil deve se fazer ativamente presente em todos os níveis de debate.

É preciso usar esse espaço também para mobilizar e empoderar comunidades em todas as regiões para lutar por independência hídrica e energética. Criado pela 350.org, o movimento Zero Fósseis parte da premissa de que a mudança só pode vir do local para o global, devolvendo às populações o poder de decisão sobre o futuro que desejam.

 

*Artigo originalmente publicado no jornal Valor Econômico