A campanha 350.org tem uma missão difícil. Convencer a população a fazer ou apoiar ações que desacelerem as mudanças climáticas em curso. A Terra está esquentando numa velocidade acelerada nos últimos 100 anos (mesmo descontando a estabilidade temporária da última década). A principal causa disso, segundo os cientistas, são as emissões de gases derivados da queima de combustíveis fósseis e florestas. A meta da organização 350.org é que a atmosfera da Terra volte a ficar com a concentração de gás carbônico na faixa de 350 partes por milhão (ppm). É o limite considerado seguro pelos principais cientistas. Acima disso, segundo eles, a temperatura média da Terra pode continuar subindo a ponto de gerar consequências catastróficas como rupturas nos padrões conhecidos de chuvas e secas.
Uma das dificuldades do percurso é que a concentração de gás carbônico na atmosfera já passou dos 350 ppm. Hoje, está em cerca de 400 ppm. E continua subindo.
A campanha prepara uma série de manifestações para antecipar uma reunião da ONU sobre mudanças climáticas marcada para 23 de setembro, em Nova York. Uma das ações é uma passeata em Nova York no dia 20. A 350.org também pretende fazer uma marcha no Rio de Janeiro. Uma delas é o CausArte, iniciativa do coletivo Clímax que fornecerá material como spray e tinta para artistas de rua de estados brasileiro produzirem murais sobre eleições e meio ambiente.
Em entrevista a ÉPOCA, May Boeve, diretora do 350.org contou como pretende chamar atenção das pessoas para o clima da Terra.
ÉPOCA: Como o 350.org vai chamar a atenção das pessoas para as mudanças climáticas?
May Boeve: O foco da campanha é mostrar a real contribuição do agronegócio às mudanças climáticas no Brasil. Dados do Observatório do Clima (uma coalizão de ONGs brasileiras) mostram que atualmente o agronegócio é o principal responsável pelas emissões de gases de efeito estufa local (59%). Essa é uma dura realidade já que parte relevante do PIB brasileiro é baseado nesse modelo de negócio. A mesma situação se reflete em outros países onde a 350 já atua a mais tempo. Temos consciência que é uma mudança que leva tempo e que culmina no voto do cidadão – esse sim um poderoso fator de mudança social.
ÉPOCA: Ainda é possível sonhar com um nível de carbono na atmosfera de 350 ppm?
May: O nível seguro de carbono na atmosfera é 350 partes por milhão. E a única forma de se voltar a ele, é a economia mundial rever o seu modelo de crescimento e desenvolvimento, fazendo a transição imediata de indústrias que contribuem mais para as emissões, como a de combustíveis fósseis e a do agronegócio. Será preciso passar para a geração de energia renovável descentralizada, eficiência energética, práticas agrícolas sustentáveis e para a agricultura familiar. E essa transição não pode mais ser postergada.
ÉPOCA: Qual é a participação brasileira nisso?
May: O Brasil ocupa a vergonhosa posição de 5o maior emissor de gases de efeito estufa do mundo, e não pode seguir cedendo aos interesses de corporações agrícolas em detrimento do bem estar da população. Eles não produzem o alimento do brasileiro e são os grandes responsáveis pelas emissões que provocam as mudanças climáticas. O resultado quem sofre é a população com os chamados desastres climáticos: deslizamentos, enchentes, seca, falta de água. O primeiro passo da transição para um Brasil de baixo carbono, é paulatinamente remover os ruralistas do centro das tomadas de decisão, abrindo espaço assim para um novo modelo, focado na agricultura familiar, como a própria ONU sugeriu em seu relatório que nomeia 2014 como o ano da agricultura familiar no mundo.
ÉPOCA: Quais seriam as consequências de manter a concentração de carbono em 400 ppm ou até acima disso?
May: A estação de monitoramento de gás carbônico mais importante do mundo tem registrado ultimamente concentrações acima de 400 partes por milhão, os níveis mais altos encontrados na Terra em milhões de anos, e estamos acrescentando 2 ppm de carbono na atmosfera todos os anos. Até agora já passamos por um aquecimento de 1 grau centígrado na temperatura do planeta, e as consequências das mudanças climáticas causadas pela concentração acima de 400 ppm já estão visíveis. O derretimento de geleiras ameaça a principal fonte de água potável para milhões de pessoas. Mosquitos, que apreciam uma temperatura mais quente, estão se espalhando por novos locais, levando dengue e malária lugares antes não afetados por estas doenças. Secas tem ficado mais frequentes, dificultando cada vez a produção de alimentos em muitos lugares. O nível do mar já aumentou, e cientistas alertam que ele pode subir diversos metros ainda neste século. Se isso acontecer, muitas cidades, países insulares e fazendas ficarão debaixo d´água. Por todo o globo, estamos acumulando recordes de eventos climáticos extremos como furacões, tufões, nevascas e secas, o que aumenta os conflitos e reduz a segurança alimentar e física em regiões que já sofrem com escassez de recursos. Estes eventos são só um sinal ameaçador do que está por vir se seguirmos acima dos 400ppm.
ÉPOCA: Se formos tentar evitar que as concentrações de carbono cheguem a níveis perigosos, as grandes empresas de petróleo e gás não poderão explorar todas suas reservas. Como convencer as empresas e seus investidores a fazer isso? Qual seria o prejuízo para as empresas e os investidores? Quem pagaria por isso?
May: Infelizmente do ponto de vista econômico não há um consenso sobre uma solução completa para justificar às exploradoras de combustíveis fósseis que parem com suas atividades e nem sobre quem vai pagar essa conta caso elas percam valor de mercado. Já do ponto de vista ambiental essa resposta e mais fácil. Não podemos ir contra os fatos. As catástrofes climáticas estão cada vez mais frequentes, mortes, disseminação de epidemias. Sem levar em consideração a recuperação de áreas afetadas que custa caro. Só os deslizamentos ocorridos na região serrana do Rio de Janeiro em 2011, custaram, segundo o Banco Mundial, 900 vidas e R$ 4,78 bilhões, e essa conta tem que ser feita também. Está claro que o modelo de desenvolvimento que escolhemos não está dando certo. Temos que ser realistas e mudar o curso dos fatos enquanto é tempo. Não tenho resposta para a questão econômica mas o que eu posso te dizer com segurança é que do ponto de vista social e ambiental, não é justo que a população mundial nem a natureza continuem pagando essa conta.
ÉPOCA: O Brasil investe na exploração de suas reservas de petróleo e gás no pré-sal. Para evitar lançar mais gás carbônico na atmosfera, o país deveria abrir mão desse recurso? Qual seria o impacto de uma decisão dessas para a economia e a sociedade brasileira?
May: O problema está nos danos ao meio ambiente e à sociedade que a exploração e comercialização de todo esse petróleo vai trazer. Agora é o momento para se discutir como diminuir as emissões de gases de efeito estufa e o petróleo tem papel preponderante nesse cenário e não deveria ter sua participação na matriz energética brasileira aumentada. Relatório divulgado pelo Greenpeace aponta que, considerando os números totais estimados para as reservas do pré-sal – 80 bilhões de barris – a queima de todo o óleo será responsável pela emissão de 35 bilhões de toneladas de gás carbônico durante um prazo de 40 anos. Mesmo que diminua o desmatamento na Amazônia e os impactos danosos no clima causado pelo agronegócio, o Brasil continuará a ocupar as primeiras posições no ranking dos maiores emissores dos gases responsáveis pelo aumento da temperatura do planeta.
ÉPOCA: Estamos passando por uma fase interessante da atmosfera. Nos últimos 10 anos, aparentemente grande parte do aquecimento adicional no planeta foi para o fundo dos oceanos. Por isso, as médias de temperatura da atmosfera não têm subido. Segundo os cientistas, isso é um ciclo que vai passar. E quando ele passar, o oceano vai devolver a energia extra para a atmosfera, acelerando o aquecimento que sentimos. Enquanto isso não acontece, como fazer campanha por uma ação contra as mudanças climáticas?
May: Segundo a NASA, as mudanças climáticas, caso não sejam contidas, produzirão no próximo século, só na América Latina, a substituição de florestas tropicais por savana na Amazônia oriental, risco de significativa perda da biodiversidade pela extinção de espécies em diversas áreas tropicais e mudanças significativas na disponibilidade de água para consumo humano, agricultura e geração de energia. Uma das perguntas que campanhas devem fazer é: queremos pagar para ver? A mudança está a nosso alcance, e se a indústria poluidora não for mudar, juntos podemos nos organizar para mudar o que podemos e pressionar para que mude o que não podemos agir diretamente.
ÉPOCA: Dependendo do ponto de vista, o Brasil é um dos melhores países para o clima. Nossa eletricidade é produzida principalmente por hidrelétricas. Nossos carros são movidos a etanol. Fizemos a maior contribuição global para a redução nas emissões de gás carbônico, quando reduzimos o desmatamento na Amazônia. O que mais é precisamos fazer?
May: Esta é uma questão que está cada vez mais em discussão no meio científico. Hidreletricas não são mais consideradas energia limpa com antigamente. As grandes barragens, além de desastrosas para comunidades tradicionais e para a biodiversidade local, também causam mudanças climáticas. Pesquisas recentes relatam impactos danosos das barragens por causa da decomposição de material orgânico da área inundada – segundo estudos, por causa dos sedimentos, barragens podem emitir mais gases de efeito estufa que usinas termelétricas a carvão. Além disso as barragens que desviam água de rios podem drenar e secar áreas que eram de inundação rio abaixo, que podem conter reservas de carbono no solo e que acabam indo para a atmosfera. Se antes o dano se refletia nas comunidades ribeirinhas, na fauna e na flora por causa das cheias, agora sabemos que as mudanças climáticas também são diretamente afetadas. E mesmo com o etanol – que é uma boa opção se pensarmos no ponto de vista das emissões mas uma má escolha se pensarmos em condições de trabalho – e com a redução do desmatamento, graças principalmente ao agronegócio – principal fonte de emissão – o Brasil é o quinto maior emissor de gases de efeito estufa no mundo. Isso indica claramente que muito tem que mudar para o Brasil ser de fato considerado um dos melhores países para o clima.