Casas alagadas em Rockport, Texas, por conta do furacão Harvey (Foto: Eric Gay/AP).

 

Por Nathália Clark

Como explicar a uma criança que não precisamos ter medo da chuva, quando ouvimos que mais de 1,2 mil pessoas morreram por conta das cheias e inundações causadas por tempestades no Nepal, na Índia e em Bangladesh nos últimos meses? Como dizer que não precisamos temer o vento, quando vemos ciclones como o Harvey, nos Estados Unidos, o furacão Irma, no Caribe, e o tufão Maring, nas Filipinas, deixar dezenas de mortos e feridos, além de milhões desabrigados em apenas alguns dias? Como tentar levar a vida normalmente, como se nada estivesse fora da ordem, quando, no Brasil, 1296 cidades estão em situação de emergência devido a extremos como secas e cheias?

Como convencer os habitantes do hemisfério Sul de que eles não serão afetados pelos eventos que acontecem no hemisfério Norte e vice-versa, uma vez que todos esses desastres estão, sim, conectados? Como seguir chamando os fenômenos de “naturais”, eximindo-nos de nossa própria responsabilidade, quando sabemos que as ações antrópicas são as principais intensificadoras do aquecimento global? Como dizer que o mundo está são quando continuamos explorando, vendendo e queimando combustíveis fósseis mesmo tendo conhecimento há décadas de que eles são os maiores emissores dos gases que provocam o efeito estufa na atmosfera?

A causa comum dos desastres que estão acontecendo nesse momento em todos os cantos do mundo é uma só: as mudanças climáticas. Com a intensificação das emissões, principalmente do gás carbônico, o clima do planeta fica mais quente, desregulando o regime de chuvas e afetando o nível e a temperatura do mar, e causando impactos socioambientais irreversíveis. E nós humanos temos, sim, uma parcela significativa de culpa nisso tudo. Direta ou indiretamente. Seja pela ação, daqueles que insistem em usar fontes poluidoras para produção de energia, ou pela inação, daqueles que não impedem que isso aconteça.

No caso do sul asiático, os países sofrem frequentemente com inundações durante a estação das monções, que ocorre de junho a setembro. Mas as agências internacionais de ajuda humanitária dizem que este ano as coisas estão piores, com milhares de vilas devastadas, pessoas desabrigadas, refugiadas longe de suas casas, privadas de comida e água limpa por dias. O furacão Irma, que chegou a ser classificado como de categoria 5, a mais alta para furacões, devastou diversos países no Caribe, das Antilhas francesas a Porto Rico, República Dominicana, Haiti, Cuba e o estado da Florida. Nas Filipinas, o Maring já matou pelo menos três pessoas em apenas um dia.

Nos Estados Unidos, segundo estimativas, mais de 6 milhões de pessoas foram impactadas pelo Harvey, que foi anunciado como o fenômeno natural – pero no mucho – mais potente a atingir o país em 13 anos, e o furacão mais intenso no Texas desde 1961. Mais de 1.200 milímetros de água caíram em dois dias sobre Houston, a capital do petróleo. Ironicamente, a maior refinaria do país, localizada na cidade texana de Port Arthur, também teve que fechar as portas por conta do alagamento.

Mas fenômenos com tamanha potência não ocorrem do nada. Em contato com mares quentes, os ciclones crescem até tornarem-se tempestades devastadoras. E o mar no Texas estava entre 2 e 7 graus acima do habitual antes do Harvey. Isso significa que mais água evaporou durante a tempestade e mais chuva caiu sobre as pessoas na costa. Por isso ele rapidamente se intensificou de uma tempestade tropical para um furacão de categoria 4, com ventos de aproximadamente 200km/h. Além disso, como efeito em cadeia, a força da tempestade aumenta ainda mais o nível do mar, que já cresceu pelo menos 30cm desde a década de 1960 no Golfo do México.

Enchente em Marechal Deodoro, Alagoas (Foto: Rita Moura/Folhapress).

 

Já no Brasil, segundo dados divulgados pelo Ministério da Integração Nacional, desde o início do ano um quarto dos municípios brasileiros já pediu socorro ao governo federal devido às fortes chuvas no Sul do país e a uma das secas mais severas já registradas no Nordeste. A maior parte das situações emergenciais (71%) é por conta de seca ou estiagem. Os outros 29% têm como causa tempestades, inundações, alagamentos, enxurradas e deslizamentos.

Em maio, as chuvas em Maceió mataram oito pessoas e deixaram milhares desabrigadas. Já em Fortaleza a seca afetou 900 mil habitantes. A capital, Brasília, que passa por racionamento de água e já completou 100 dias sem chuva, está em estado de emergência desde fevereiro. Na Paraíba, 196 das 223 cidades sofrem com a estiagem. No total, o Ministério da Integração diz ter repassado 200 milhões às cidades em situação de emergência, para ações de socorro, assistência humanitária, restabelecimento de serviços e recuperação de estruturas danificadas.

Como se vê, os eventos climáticos não excluem ninguém, em nenhuma parte do globo. A Argentina, que abriga uma das maiores reservas de gás de xisto do mundo, na região de Vaca Muerta, na província de Neuquén, também tem sofrido com os impactos das alterações no clima. Em março, uma forte onda de calor matou dezenas de bezerros na província de La Pampa. Segundo o veterinário que avaliou animais mortos em uma das fazendas da região, eles sofreram ataques cardíacos provocados pela exposição contínua às elevadas temperaturas, que chegaram a 40oC numa época cuja média é 16oC.

Bezerros mortos por onda de calor na Argentina Foto: Reprodução G1).

 

Um planeta mais quente, com oceanos mais quentes, tornam mais prováveis eventos de intensificação rápida e rara, aumentando as ocorrências de desastres extremos, tornando corriqueiro o que antes era ocasional ou sazonal. Não é “natural” que milhões de pessoas sofram as consequências das ações de apenas alguns, que priorizam o lucro ao bem-estar das populações. Não podemos naturalizar a morte. Seja de familiares, vizinhos ou do mundo tal qual o conhecemos.

Negar ou ignorar a ciência não nos prepara física, psicológica ou financeiramente para lidar com os desastres e desafios climáticos que temos vivenciado cotidianamente em diversas regiões do globo. Para frear essas catástrofes, devemos parar agora a indústria fóssil, impedindo que ela continue a colocar o carvão, petróleo e gás acima da sobrevivência da própria humanidade.

Isso significa que não pode haver mais nenhum poço para exploração desses combustíveis, sejam eles novos ou já existentes. Significa também que os governos mundiais têm que assumir a responsabilidade pelas mudanças climáticas, criando e colocando em prática políticas de resiliência e adaptação para todas as cidades, além de iniciar uma transição urgente para fontes renováveis de energia, que sejam justas, livres e acessíveis, em todos os setores da economia. E isso tem que ser feito já. Antes que seja tarde demais.