Você ficaria tranquilo se soubesse que a água que chega à sua casa recebeu resíduos de mineração em algum momento? Gostaria que a comida que você come fosse cultivada com essa água?
Pois o governo da província de Mendoza, no oeste da Argentina, região conhecida mundialmente pelos vinhos que produz, tentou colocar em prática uma lei que permitia às empresas de mineração locais usar em suas atividades substâncias como ácido sulfúrico e compostos de cianeto, que poluem a água e são tóxicos para o corpo humano, se ingeridos por um longo período.
No entanto, a 350.org estava ciente dessa ameaça e agiu imediatamente, juntamente com milhares de cidadãos e várias organizações ambientais locais, para impedir que a indústria extrativa continuasse atacando as comunidades e a natureza. Funcionou!
Leia abaixo uma história verdadeira sobre como a pressão popular derrotou o discurso falso de que, para gerar emprego e renda, é necessário colocar em risco a saúde dos mais vulneráveis.
Em um momento em que a conversa sobre uma recuperação econômica justa no período pós-Covid-19 torna-se tão importante, exemplos como o de Mendoza nos lembram que a proteção da saúde e a da economia não são lutas opostas. Pelo contrário, uma não existe sem a outra!
Os vinhedos da ira
Em dezembro de 2019, Mendoza experimentou um levante político incomum para uma região de paisagens bucólicas e com um ritmo de vida bastante diferente do que o mundo se acostumou a ver na capital argentina, Buenos Aires, a terra dos “panelaços”. Assim que assumiu o cargo, no dia 10 daquele mês, o governador Rodolfo Suárez se esforçou para aprovar a lei 9.209 na legislatura local, que na prática permitia o uso de cianeto, mercúrio e outras substâncias tóxicas na província.
Desde 2007, quando os congressistas e senadores de Mendoza aprovaram outra lei, a 7.722, que proibia o uso de cianeto e ácido sulfúrico, a atividade de mineração havia se tornado quase impossível na região. Essas substâncias são usadas no processo industrial para separar os minerais mais valiosos, como ouro, prata e cobre, das pedras em que são encontrados.
A preocupação de moradores e congressistas em bloquear essa atividade, lá em 2007, foi justificada pela escassez de água na região, que é uma das mais áridas da Argentina.
Segundo Marcelo Giraud, professor de Geografia da Universidade Nacional de Cuyo, em Mendoza, a área apropriada ao cultivo agrícola na província equivale a menos de 4% do território e está distribuída por cinco seções, conhecidas como oásis, já que a região tem um clima bastante seco. Essas áreas concentram também 90% da população de Mendoza e são habitáveis porque estão próximas a quatro grandes rios e seus afluentes, que se formam com o descongelamento natural de parte da Cordilheira dos Andes e fluem para as áreas mais baixas.
A atividade de mineração, se permitida, ocorreria na parte mais alta da província, perto das nascentes onde o degelo acontece, já que essas são as terras que concentram os recursos minerais na região. Por isso, uma eventual contaminação das fontes de água com resquícios da atividade mineira afetaria todas as famílias que dependem dos rios andinos e que vivem na parte mais baixa do território, incluindo aquelas que cultivam os vinhedos que deram à região uma projeção global.
Ironicamente, a tentativa dos deputados provinciais de permitir o uso de cianeto e ácido sulfúrico na mineração ocorreu em uma época de extrema seca na província, ou seja, em um momento em que estava ainda mais evidente a necessidade do uso racional da água na região.
“Além dos derramamentos, os efeitos que mais nos preocupavam, caso a lei entrasse em vigor, eram os impactos crônicos e de longo prazo da presença dessas substâncias na água”, afirma Giraud.
Segundo o professor, um grande estudo realizado nos Estados Unidos, entre os anos de 1970 e 2005, mostrou que os níveis de poluição das áreas próximas às minas, crescentes ao longo do tempo de funcionamento dos empreendimentos, excederam o limite estabelecido pelas autoridades ambientais em cerca de 75% dos casos.
Ele explica que os efeitos dessa contaminação na saúde dos indivíduos variam de acordo com a substância acumulada no corpo, mas podem incluir uma maior probabilidade de câncer, aborto espontâneo e doenças do sangue.
Ainda assim, em um cenário de forte pressão por parte das empresas de mineração interessadas em retornar à exploração na província, o governador Suárez prometeu firmar um acordo, em seu primeiro mês no cargo, para modificar as restrições ao uso das substâncias proibidas.
De fato, o governo da província propôs à Casa Legislativa a votação do projeto de lei 9.209 pouco antes do Natal, ou seja, pouco tempo depois de o governador assumir o cargo. Com o apoio de várias bancadas, incluindo parte dos grupos de oposição, o projeto foi aprovado, o que levou à anulação das proibições definidas na lei anterior sobre o tema, a de 2007.
Com isso, ficou permitido às empresas de mineração usar ácido sulfúrico e cianeto próximo aos mesmos córregos e nascentes que abastecem as milhares de famílias de agricultores e viticultores da região, bem como a população de áreas urbanas.
In vino veritas
A mudança causou indignação em grande parte da população de Mendoza. Movimentos de bairro, organizações de produtores rurais e instituições ambientais começaram a se articular para exigir a anulação da nova lei 9.209. Líderes desses movimentos sociais organizaram uma marcha popular, que saiu do interior da província rumo à capital, para demonstrar aos deputados que o povo estava contra a mudança na lei que protegia sua água.
“Foi uma marcha histórica. O comércio fechou, as indústrias pararam e grupos de produtores rurais, estudantes, comerciantes e outras categorias estiveram nas ruas e estradas por um dia e uma noite, começando nas cidades a cerca de 100 km da capital. As pessoas que estavam no caminho iam se juntando e, no final, havia mais de 100 mil pessoas em frente ao Palácio do Governo”, conta Adolfo Nieto, proprietário de uma pequena empresa e membro do Grupo Multisetorial General Alvear, envolvido nas marchas de dezembro.
Atento a esses movimentos, Ignacio Zavaleta, organizador de campanhas da 350.org no país, viajou imediatamente em seu veículo particular, por 985 quilômetros, até a capital da província, a cidade de Mendoza. Lá, ele entrou com uma ação na Justiça provincial para pedir o reconhecimento da inconstitucionalidade da nova lei.
A ação mencionava como argumento a falta de estudos ambientais obrigatórios e preventivos, além do princípio da proibição de inovar, ou seja, de alterar o estado de fato existente no início do processo antes de que as devidas consultas fossem feitas. A 350.org foi a única organização a entrar com uma ação na Justiça, naquele momento.
A Corte provincial recebeu a solicitação da 350.org e aceitou os argumentos apresentados por Ignacio. Nesse mesmo dia, pressionado pelas iniciativas da população, da 350.org e da sociedade civil organizada, o governador anunciou que havia desistido de manter em vigor a nova lei e que enviaria um novo texto ao Poder Legislativo local, para que o Lei 7.722, aprovada em 2008 e que protegia as águas da região, voltasse a vigorar.
“Foi uma vitória do povo contra o lobby da indústria extrativista. Mendoza deu um claro sinal de que os empregos e a renda são muito bem-vindos, desde que não prejudiquem as atividades econômicas existentes e, acima de tudo, não ponham em risco a saúde das pessoas”, afirmou Zavaleta.
Para Adolfo Nieto, a manutenção da lei de 2007 mostrou que o povo de Mendoza cumpre o que promete, quando repete o ditado local de que “em Mendoza, a água não está disponível para negociação”.
“Estou orgulhoso de todos nós que trabalhamos nisso e do que o povo da província conseguiu”, ele comemora.
Para o professor Giraud, que também participou das mobilizações, os deputados a favor da mudança na lei foram supreendidos pela força das manifestações populares.
“Eles pensaram que seríamos quatro gatos pingados nos protestos na Assembléia, mas a sociedade de Mendoza estava massivamente presente”, disse Giraud.
Semeando mobilizações populares
A partir desse resultado, a mobilização popular em Mendoza nos últimos dias de 2019 gerou ações semelhantes, nos primeiros meses de 2020, em outra província argentina, Chubut, onde o governo também vem tentando liberar o uso de cianeto na mineração.
Depois que Mendoza conseguiu manter sua lei de proteção da água, as marchas em Chubut ganharam corpo, com milhares de pessoas nas ruas de várias cidades. A 350.org já se dirigiu ao governador e ao Poder Legislativo de Chubut, alertando que recorrerá à Justiça caso a atual estrutura regulatória seja alterada.
Devido à pandemia de Covid-19, as atividades legislativas em algumas regiões e as marchas populares foram interrompidas na Argentina a partir de março. No entanto, o ativista da 350.org, Ignacio Zavaleta, ainda está em contato constante com os membros de todas as províncias e segue trabalhando pela ativação online do fórum “Legisladores pelo Clima”. Esse grupo, que está começando a tomar forma, ajudará a coordenar as mobilizações para o meio ambiente e a saúde das comunidades na Argentina.
Ele também está levando uma demanda similar à Província de Río Negro, onde uma determinação que proibia o uso de cianeto, mercúrio e outros elementos tóxicos na mineração foi revogada alguns anos atrás. Ignacio está pedindo ao Legislativo e ao Governador que recuperem a lei que protegia as fontes de água na região, já que sua revogação constitui um ato flagrante de inconstitucionalidade.
A vitória popular em Mendoza ainda serve de motivação para outras regiões da Argentina afetadas pelas indústrias extrativas e fósseis. Por exemplo, na província de Neuquén, onde a 350.org atua há mais de cinco anos para interromper a extração de gás fóssil por fraturamento (fracking),a mobilização continua a se fortalecer.
Em um momento em que o mundo discute como reestruturar a economia diante da crise do coronavírus, a ação dos grupos sociais em Mendoza é um lembrete fundamental de que desenvolvimento não combina com enriquecimento de alguns setores à custa da falência de outros. Acima de tudo, a vitória popular em Mendoza lembra que a saúde e o bem-estar das pessoas devem ser, sempre, a base de qualquer decisão de governo.
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Créditos das fotos:
Vinhedos em Mendoza – Paul Lucyk no Unsplash
Cordilheira dos Andes – Nicolas Prieto no Unsplash
Ignacio Zavaleta e Fernando Armanague – Arquivo pessoal