Existe toda uma movimentação de boicote a Copa desse ano por questões muito sérias que acontecem no país sede. Colegas meus no mundo todo nem querem falar a respeito, e até questionam o fato dos jogadores da seleção estarem lá participando do evento. 

Meu “chapéu” humanista, ativista, feminista grita alto e eu até considerei não falar sobre, mas me desculpem, meu “chapéu” brasileiro, povão do terceiro mundo, e o significado familiar que a Copa traz ao meu lar, falam alto também. E de fato, quando vi, já estava tirando das caixas as decorações de Copa do Mundo que dividiam espaço com as decorações de Natal no meu sótão. Essa será a primeira Copa do Mundo que meus filhos assistirão comigo e essa será uma memória afetiva importante para nós. Pintaremos o rosto, vestiremos a camisa do Brasil, (desta vez sem medo de ser feliz), comeremos pipoca e esperamos gritar é HEXAAA É HEXAAA.

Essas movimentações e boicotes são válidos? Sim, claro que são! Mas já parou para pensar que a situação do Catar nada mais é do que uma caricatura fiel de muitos países em desenvolvimento? Sendo nascida e vivendo em um dos países com a maior desigualdade no mundo, com 33 milhões de pessoas passando fome, com taxas altíssimas de feminicídio e lgbtfobia, faz sentido eu “boicotar” um evento que faz parte da cultura do país? Para mim, não faz. Então, me perdoem meus amigos do Norte Global, mas aqui tem Copa!

O fato é que nenhum dos meus “chapéus” deveriam ser invalidados, e para mim, silenciar é e sempre será consentir. Por isso, acredito que precisamos falar da alegria e do bom humor da Copa do Mundo, assim como precisamos falar também sobre todas as questões que estão sendo escancaradas no Catar, e até fazer uma reflexão sobre o nosso país. 

Não sei se você viu, mas desde que foi decidido como o país que sediaria a Copa, surgiram diversas notícias sobre a situação dos direitos humanos no país, especialmente no que diz respeito às mulheres, membros da comunidade LGBTQIA+, trabalhadores migrantes e jornalistas.

Por isso, listamos aqui alguns fatos importantes sobre o Catar:

Petróleo e Gás são dominantes

O Catar é menor do que o nosso Estado do Sergipe, e no fim do século 16 tornou-se colônia inglesa, antes era uma vila pesqueira, que tinha, cerca de mil barcos, nasceu em volta de pescadores que mergulhavam para caçar pérolas

“É do mar, e não da terra, que os nativos do Qatar tiram seu sustento, e é no mar que eles habitam, passando em suas águas metade do ano buscando pérolas e a outra metade na pesca ou no comércio.” relatou o viajante britânico Gifford Palgrave

Nos anos 1930, o que antes era uma prática artesanal e ancestral, virou uma indústria, dominada por japoneses e as fazendas de pérolas tornaram-se a produção mais previsível, controlada e barata. Daí, perto dos anos 40, o país trocou a base da economia para o petróleo. Desde então, a pesca artesanal desapareceu e a economia do país passou a ser baseada em combustíveis fósseis. 

Atualmente, o país lidera com a maior emissão de CO2 per capita, e esse papo de Copa do Mundo Net-Zero é um puro suco, cheio de bagaço do greenwashing. (Vou falar sobre isso em um próximo post).

Além de maior emissor per capita, é importante ressaltar que no país há uma enorme desigualdade social e é o local onde há a maior concentração de renda do mundo, os 1% mais ricos, concentram 29% de renda de todo o país. 

Sem novidades para nós do movimento climático do Sul Global: Onde há o desenvolvimento da indústria de petróleo e gás, há também o tripe insustentável: Violação dos Direitos Ambientais, Violação dos Direitos Humanos e Violação dos Direitos Trabalhistas, e assim sendo, organizamos esse fatos para termos em mente.

 

  1. Desigualdade: Um país minúsculo que segundo uma lista elaborada este ano pela Global Finance com base no PIB per capita, é o quarto país mais rico do mundo, com US$ 112.789 per capita, atrás apenas de Luxemburgo, Cingapura e Irlanda. Entretanto, um salário mínimo no Catar – é de 1000 reais cataris – isto ronda os US$270. Ou seja, um dos países mais ricos do mundo, tem o salário mínimo muito baixo para os preços praticados no centro de Doha. Por isso, essas pessoas vivem, sobretudo, nos arredores da cidade ou em bairros mais pobres. E atenção, este salário mínimo apenas foi colocado em prática o ano passado, devido a pressão da FIFA, que vem fazendo essa pressão desde que o Catar soube que ia organizar o Mundial. Antes, não havia salário mínimo neste país.
  2. Exploração de Migrantes: Houve forte exploração da mão de obra de migrantes sob condição desumana para a construção de estádios luxuosos. Milhares de mortes foram relatadas entre trabalhadores migrantes, que muitas vezes vêm de alguns dos países mais pobres do mundo para fazer trabalhos perigosos, em calor extremo e por baixos salários. A Anistia Internacional até pediu à Fifa que aloque US$ 440 milhões para compensar os trabalhadores migrantes. O jornal britânico The Guardian revelou que até 6.500 trabalhadores migrantes sul-asiáticos morreram no Catar desde 2010, quando o Catar foi escolhido para sediar a Copa do Mundo de 2022.
  3. Ameaça à liberdade de imprensa: Houve repressão à imprensa quando dois jornalistas noruegueses da emissora estatal NRK foram detidos pela polícia enquanto tentavam deixar o país. Um pouco antes, houve uma transmissão de uma reportagem falando sobre as condições dos trabalhadores, dizendo que alguns estavam em “condições horríveis”. Os jornalistas conseguiram seguir para Oslo no dia seguinte à prisão. Porém, é importante ressaltar que uma situação semelhante já havia acontecido, em 2015, com repórter da BBC.
  4. LGBTQIA+: De acordo com a Anistia Internacional, Catar é um dos 70 países do mundo onde as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo são criminalizadas. As penas podem chegar a até sete anos de prisão. Há relatos de membros da comunidade LGBT sendo presos por atividades online, e o governo censura regularmente conteúdo relacionado à identidade de gênero e orientação sexual.
  5. Direitos da Mulher: As mulheres no Catar, enfrentam discriminação tanto na lei quanto na prática, pois permanecem subordinadas aos seus tutores (pai, marido, irmão, etc.) e devem pedir sua permissão para decisões importantes como casar, estudar, trabalhar e até mesmo para acessar tratamentos de saúde reprodutiva e controles ginecológicos básicos, como exames de Papanicolau, por exemplo. Além disso, é muito difícil conseguirem se divorciar e mais ainda, obter a guarda dos filhos após o divórcio.
  6. Expansão do petróleo e do Gás com participação expressiva de empresas do Norte Global: Infelizmente, os planos de expansão dos combustíveis fósseis são crescentes, segundo a Reuters, o país firmou, recentemente, uma parceria bilionária junto com Exxon Mobil, Total Energies, Shell e ConocoPhillips.

 

Parece com progresso? Isso soa familiar? 

Acho incrível que eventos grandes e globais, tragam a atenção para questões importantes como desigualdade, direitos e clima. Mas acho importante também termos consciência de que o Catar não é um caso isolado, e que a maioria dos habitantes de lá, os 99% que não possuem acesso a riqueza do país, sejam considerados como parte de uma nação que é refém do petróleo e do gás.  

E eu faço questão de vestir minha camisa verde e amarela com orgulho durante a Copa do Mundo! Sabe por que? 

Porque eu sei que quando o Brasil entra em campo, não é apenas a nossa nação que está ali.

Junto com a seleção brasileira, entra toda uma classe, a classe dos países do Sul Global, daqueles que nasceram com menos privilégios, que morrem com as consequências das mudanças climáticas e que já sofrem boicote todos os dias, mas que ainda assim, sonha em fazer a diferença e viver em um mundo mais justo e sustentável.

Acompanhe esta série que reflete algo #ParaAlémdaCopa

Sobre a 350

A 350 é uma organização global que luta por uma transição energética justa e sustentável, que coloque as pessoas e o planeta sempre em primeiro lugar. Para nós, não existe justiça climática sem justiça social — e as lutas pelo nosso clima e por direitos humanos, liberdade de expressão e igualdade caminham lado a lado.

 

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Livia Lie – Digital Campaigner da 350 América Latina