Por Peri Dias*
Outro dia, meus amigos de infância e eu estávamos conversando por mensagens de aplicativo sobre a onda de protestos que vem sacudindo o mundo depois do assassinato de George Floyd pela Polícia de Mineápolis, nos Estados Unidos. Tentávamos nos lembrar se tínhamos tido alguma conversa sobre racismo quando estávamos na escola, no fim dos anos 1990, e a resposta unânime foi que não, o racismo não era um tema em nosso universo adolescente.
Provavelmente, isso tem a ver com a composição racial do colégio onde estudávamos, uma conhecida escola particular em São Paulo. Entre os mais de 300 estudantes que se formaram no Ensino Médio desse colégio, no mesmo ano em que eu e esses meus amigos concluímos o curso, havia três pessoas negras, pelas nossas contas. Das dezenas de professores que tivemos, só um era negro, de acordo com nossas memórias.
Na minha turma da faculdade, também não me lembro de alunos ou alunas negras. Nos meus ambientes de trabalho como jornalista, incluindo redações de grandes veículos e ONGs, conto nos dedos o número de colegas pretos ou pardos. Nenhum era chefe. Quando vou a um restaurante mais caro em São Paulo, encontro poucos clientes negros, mas quando entro no metrô ou tomo um ônibus, aí sim, vejo um retrato mais diverso e próximo da realidade da população do Brasil, com uma forte presença de negros.
Segundo dados oficiais do governo, cerca de 56% dos brasileiros se declaram pretos ou pardos, mas claramente existem lugares onde essa parcela da população está muito presente, e outros onde ela aparece de forma escassa – os espaços de poder e privilégio.
Um sistema que define quem vale mais
Em entrevista à CNN Brasil, a filósofa e escritora Djamila Ribeiro explicou a relação entre racismo e violência policial
Demorei muito tempo para entender que essa é uma das manifestações do racismo. Mesmo que eu nunca tenha visto meus colegas de escola, faculdade ou trabalho tomando atitudes preconceituosas contra um indivíduo ou grupo, o racismo esteve presente na formação dos espaços de classe média dos quais eu fiz parte, durante toda minha vida toda, justamente pela ausência de pessoas negras, em um país em que essa população é maioria.
No Brasil, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar, o racismo não se traduz apenas em atitudes. Não é só sufocar um homem desarmado até sua morte, colocando o joelho em seu pescoço em uma atitude de humilhação. O racismo é um sistema, uma forma de organizar o mundo e de definir quem ocupará quais espaços, construída ao longo de séculos.
Nesse sistema, pessoas negras valem menos. A polícia pode ser mais violenta com elas. Professores, médicos e funcionários públicos têm autorização implícita para tratá-las com menos respeito. Os bairros e territórios onde há uma grande concentração delas podem ser contaminados pela indústria fóssil, pelo extrativismo e pelas queimadas. Espera-se que elas recebam menos por seu trabalho e corram mais riscos, inclusive em uma pandemia.
Mesmo nos casos em que ninguém foi lá e apertou os pescoços das pessoas negras, a história de nossos países e a forma de se organizar das nossas sociedades levaram e continuam a levar pessoas negras a situações quase sempre desfavoráveis em relação à das pessoas brancas.
É racismo ou classismo?
Ao programa Roda Viva, o filósofo, jurista e professor universitário, Silvio Almeida falou sobre racismo estrutural no Brasil
Muita gente no Brasil ainda diz que não somos um país racista, mas classista. Que os negros enfrentam piores condições de vida não por uma questão racial, mas porque são mais pobres. Porém, se isso fosse verdade, pessoas pretas ou pardas de classe média ou alta não sofreriam preconceito, e há inúmeros casos de discriminação contra essas pessoas, inclusive celebridades, para provar o contrário.
Além disso, a proporção de pessoas vivendo com baixa renda é maior entre a população negra. Como muitas pessoas pretas já disseram, pobreza no Brasil tem cor. Classismo e racismo, portanto, estão muito ligados. E não é coincidência: um conjunto de condições históricas nos trouxe até aqui, incluindo a escravidão transatlântica, o colonialismo europeu e a falta de interesse da nossa sociedade em reparar esses vergonhosos capítulos da história da humanidade.
Portanto, cabe a nós, brasileiros que tivemos o privilégio de não sofrer racismo em nosso próprio país, reconhecer que, mesmo quando não temos atitudes racistas, estamos imersos em um sistema de opressão que se materializa em muitas facetas.
Este post faz parte de uma série de textos sobre racismo e movimento climático publicados recentemente pela 350.org. Leia mais:
- Vamos conversar sobre racismo?
- Resistir à supremacia branca e ao racismo é uma questão global
- Vozes negras também importam dentro do movimento ambiental
* Peri Dias é gerente de Comunicação da 350.org na América Latina
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Crédito das fotos:
Protesto com cartaz Vidas Negras Importam: Grasi Barbaresco (instagram e site)