O histórico do Brasil com relação aos impactos socioambientais de vazamento de petróleo não é de hoje. Em janeiro de 2000, um duto da Transpetro/Petrobras, que ligava o terminal da Ilha D’água à Refinaria Duque de Caxias (REDUC) se rompeu e foram despejados 1,3 milhão de litros de óleo na Baía da Guanabara, no Rio de Janeiro. Em dezembro de 2018, mais 60 mil litros de óleo vazaram no rio Estrela, que também desemboca na baía. Neste desastre, a Transpetro alegou que a tentativa de furto do óleo resultou no acidente. Os efeitos são significativos no ecossistema e nas vidas de cerca de 13 mil pescadores, que foram afetadas diretamente no seu meio de subsistência e são sentidos até hoje. 

Protesto de pescadores artesanais - ref. vazamento de óleo na Baía de Guanabara em 2000

Foto: SindPetro

Somente agora, prestes a completar duas décadas em 18 de janeiro de 2020 – é importante frisar este período – houve uma decisão da Justiça, na 25ª Vara Cível no Rio de Janeiro, sobre a indenização por dano material, cujo autor da ação coletiva é a Federação de Pescadores do Estado do Rio de Janeiro (FEPERJ) e o réu é a Petrobras. Cada pescador atingido deverá receber em até 60 dias, o valor de R$ 7,9 mil, do qual deverão ser descontados 30% de honorários advocatícios. 

Este resultado se deu em uma audiência especial de conciliação, no dia 3 de dezembro deste ano. O que a empresa está pagando são somente 45 dias em que afirma que os pescadores à época estavam com suas atividades suspensas. Esta conjuntura leva a refletir sobre como ficarão os pescadores artesanais atingidos pelos efeitos do vazamento de petróleo cru, desde agosto deste ano, na costa brasileira, que afetou o Nordeste e estados do Sudeste. Com um detalhe importante – mais de 100 dias depois, ainda não há um retorno oficial sobre autores e origem do crime ambiental, que atingiu até agora cerca de 1.000 localidades no litoral. 

Pescadores artesanais, catadores de caranguejo...se manifestam em Niteroi sobre vazamento de óleo na Baía da Guanabara em 2000 (16/12/2019)

Manifestação hoje (16/12), em Niterói. Foto: Paula Mairán

Protestos ocorrem no RJ

Centenas de pescadores artesanais do Rio de Janeiro protestam quanto ao valor não ter sido corrigido nestes anos e que a lista de beneficiários não está contemplando inúmeros pescadores artesanais, catadores de caranguejos e marisqueiros afetados em suas atividades e subsistência. Uma comissão chegou a fazer uma manifestação, no último dia 9, em frente à FEPERJ e protocolou uma representação no Ministério Público Federal, que solicita a anulação da negociação. Nesta segunda-feira (16/12), também ocorreu uma manifestação no município de Niterói, na qual manifestantes pedem revisão da lista de beneficiários e questionam o valor acordado.

Pescadores expõem questionamentos

O pescador artesanal Santelmo Rezende de Carvalho, tesoureiro da Colônia de Pesca Z1, de Ramos, afirma que a negociação tem muitos problemas. “Estamos levantando a lista dos beneficiários, que são da Z1, e a maioria dos 700 nomes que foram passados são de pessoas que já chegaram a falecer, neste período e que também tinham na faixa de 70 a 80 anos, na época. Eu, por exemplo, e outros companheiros não estamos na lista, porque havíamos feito nossa documentação de pescador no ano 2000, mas eu já pescava desde pequeno com meu pai”, explica. 

E logo desabafa – “O pescador artesanal está sendo extinto e estamos sendo humilhados de todas as formas. Cada vez mais empresas de grande porte, com grandes navios, ocupam a região e já não temos mais espaço. Isso me entristece muito. Tem pessoas passando fome, crianças das famílias de pescadores catando latinhas. Os efeitos do óleo derramado ainda continuam e prejudicaram uma área importante de desova, além da poluição que atinge a Baía por todos estes anos”, fala. 

Muitas dúvidas a serem esclarecidas

Para Alexandre Anderson Souza, presidente da Ahomar, este desfecho é ‘um banho de água fria’ nas comunidades pesqueiras da Baía de Guanabara. “Foi um acordo medíocre feito às escuras sem o aval dos pescadores atingidos. Depois de muito tempo de espera, vem uma esmola. Eu não sei quem é pior? Se a poluidora Petrobras, o judiciário ao aceitar este acordo ou à Federação, que se submete a isso estranhamente depois de 20 anos de silêncio. Lamentável que muitos pescadores, por necessidade, irão aceitar e nós, tristemente, lamentar, sem poder fazer nada, pois a ação não é nossa”, afirma.

Segundo Souza, a Ahomar não contesta a legitimidade de a FEPERJ fazer este acordo, já que o código de processo civil permite. “A questão é porque o acordo foi uma reunião secreta, no dia 3, e não houve uma consulta prévia com seus associados, nas colônias, com ampla divulgação, com aval deles? Por que este valor tão irrisório? Temos conhecimento de sentença em 2007, sobre este caso, com valor bem superior ao acordado individualmente. Nós estávamos lá durante o vazamento em 2000. Há uma grande quantidade de pescadores artesanais principalmente da região de Magé, por exemplo, que já estavam associados, em não estão nesta lista atual”, diz. A entidade vai solicitar esclarecimentos sobre este acordo e as discrepâncias encontradas na lista.

Para Márcia Regina Correa dos Santos, diretora-presidente da Associação de Caranguejeiros e Amigos dos Mangues de Magé, que também vivenciou o vazamento no ano 2000 e suas consequências até hoje, há muitos pontos a serem esclarecidos. “Nesta lista atual de beneficiários, uma grande parte dos pescadores tinha na faixa de 80 anos na época e centenas de coletores de caranguejos não estão contemplados. Muitas pessoas já morreram, outras adoeceram, tiveram depressão e houve a desestruturação de inúmeras famílias. Na Justiça, têm de esclarecer para a gente ainda que critério foi este e como chegaram em um valor tão baixo, nesta negociação”, afirma. 

Mais um ponto questionado por Márcia é quanto aos impactos socioambientais. ‘Nossos mangues e o mar na região nunca mais foram os mesmos. Ainda há sinais de devastação com o óleo, além de outros tipos de poluição, como garrafas PET e resíduos. Tudo isso diminuiu a quantidade de caranguejos e peixes”, conta.  

Efeitos ecossistêmicos à socioeconômicos e na saúde

Luiz Afonso Rosário, coordenador do Programa Defensores Climáticos, da 350.org no Brasil, alerta que o vazamento nas proporções que ocorreu na Baía da Guanabara, desencadeiam contaminações intensas no meio ambiente estuarino, que vão além do mar, sendo que a principal delas se relaciona com os peixes, crustáceos e moluscos, principalmente pela condição de serem bioacumuladores dos elementos químicos nocivos à vida, como também pela sua condição de estarem na cadeia alimentar de centenas de milhares de famílias que se utilizam desta  fonte proteica para a sua dieta alimentar. “Também há a contaminação das algas, plânctons e microplânctons que não se restringem somente às áreas impactadas, uma vez que são levados pelas correntes marítimas e forças de marés, para absolutamente todos os lugares onde há influência das águas estuarinas, inclusive a orla oceânica e praias do Rio de Janeiro”. 

Segundo ele, os indicadores econômicos, sociais e socioambientais das populações direta e indiretamente impactadas por acidentes como os severos derramamentos de óleo, invariavelmente empobrecem, adoecem com mais frequência, e em padrões muito superiores aos que tinham anteriormente ao acidente.

“Há perdas significativas de sua qualidade de vida, de sua dieta alimentar e principalmente quanto à saúde mental, onde os casos de depressão se acumulam, aceleram os processos migratórios, enfim, se multiplicam as mazelas sociais nestas comunidades. No outro viés, os governos inertes e míopes, não conseguem contrapor com medidas sociais e econômicas para minimizar estas situações. São processos cumulativos de consequências críticas, onde o conjunto de “negações ao direito” condenam estas populações de pescadores artesanais à sua morte pública ou social”, analisa Luiz Afonso. 

Ele acrescenta que não se deve esquecer que há mais atingidos, incluindo centenas de pequenos negócios de apoio à pesca artesanal e de artífices na manutenção de barcos e apetrechos de pesca, sejam formais ou informais, foram diretamente impactados com o vazamento.

No aspecto de saúde pública, o coordenador do Programa Defensores Climáticos da 350.org, no Brasil, alerta que não houve acompanhamento sistemático da saúde pública em relação a estas populações de pescadores artesanais na Baía da Guanabara, por parte do Estado. “Isso contraria protocolos internacionais da Organização Mundial da Saúde (OMS). Como os efeitos mais severos da contaminação por estes químicos e metais pesados, desencadeiam doenças a médio e longo prazo na população, principalmente diversos tipos de câncer, nenhum governante e nem mesmo órgãos de fiscalização e controle ousam discutir tais premissas. É a negação do direito humano e à qualidade de vida, uma decepcionante e triste realidade desta população”.

“Este tipo de atitude que o Estado Brasileiro toma, por meio de suas instituições formais, dá um claro recado às empresas poluidoras e aos degradadores do meio ambiente … que o crime ambiental compensa! É por esse caminho que a sociedade brasileira quer trilhar?, questiona Luiz Afonso.

Histórico do processo

A ação coletiva que a FEPERJ deu entrada em 2000 pedia indenização quanto a danos materiais, morais e lucro cessante por dez anos, que era o tempo estimado para a recuperação ambiental, que foi reconhecido pela Justiça, que condenou a Petrobras, em 2007 a pagar aproximadamente R$ 1,23 bilhões a 12.180 pescadores, em primeira instância. A empresa recorreu em segunda instância, rebatendo que só reconhecia 45 dias a serem indenizados aos pescadores, que teria sido o período em que a pesca ficou suspensa. Outro questionamento era de que a FEPERJ havia dimensionado à época 30 mil pescadores afetados e seriam 12.879. Um vaivém de números que significam vidas.

O imbróglio jurídico se ampliou, quando a Justiça considerou que os pagamentos deveriam ser feitos individualmente a cada pescador e, não, na soma total à Federação, e só agora, depois de todos estes anos, chegou neste resultado da audiência especial de conciliação.  

Sobre a 350.org e as mudanças climáticas

A 350.org é um movimento global de pessoas que trabalham para acabar com a era dos combustíveis fósseis e construir um mundo de energias renováveis e livres, lideradas pela comunidade e acessíveis a todos. Nossas ações vêm ao encontro de medidas que visem inibir a aceleração das mudanças climáticas pela ação humana, que incluem a manutenção das florestas.

Desde o início, trabalha questões de mudanças climáticas e luta contra os fósseis junto às comunidades indígenas e outras comunidades tradicionais por meio do Programa 350 Indígenas e vem reforçando seu posicionamento em defesa das comunidades afetadas por meio da campanha Defensores do Clima. Mais uma vertente das iniciativas apoiadas pela 350.org é da conjugação entre Fé, Paz e Clima.

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Sucena Shkrada Resk – jornalista ambiental, especialista em política internacional, e meio ambiente e sociedade, é digital organizer da 350.org Brasil

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