Por Peri Dias*
Neste Dia Mundial da Água, que se celebra anualmente em 22 de março, cabe às sociedades de todo o mundo cobrar dos governos nacionais e locais que eliminem os riscos e prejuízos que o discurso do “crescimento a qualquer preço” tem acarretado às nossas fontes de água. Esses danos são promovidos não apenas pelos setores de mineração e combustíveis fósseis, mas também por muitos de nossos governantes.
No caso da Argentina, as ameaças às fontes de água tornaram-se ainda mais evidentes de um ano para cá. Venha conosco neste blog para saber que riscos são esses e como a sociedade civil argentina está lutando para proteger a água de seu país.
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Quais são as áreas onde a água está sob ameaça do extrativismo?
Quando pensamos em riscos à água na Argentina de hoje, é provável que nos lembremos imediatamente da província de Chubut e sua luta contra a megamineração. No entanto, não podemos nos esquecer que também se encontra em situação delicada a região de Vaca Muerta, uma parte do território argentino caracterizada pela exploração de combustíveis fósseis e que inclui áreas das províncias de Neuquén, Río Negro, La Pampa e Mendoza.
Neste trecho do país, empresas multimilionárias extraem gás e petróleo utilizando fortes subsídios públicos em suas operações e causando danos à saúde física, mental e financeira das famílias da região. As operações de extração de gás são especialmente nocivas, porque utilizam a técnica do fracking (fraturamento hidráulico), banida em muitos países e comprovadamente destrutiva ao meio ambiente.
Tanto no caso de Chubut quanto nos das províncias onde se encontra Vaca Muerta, de fato são preocupantes as crescentes investidas de uma parcela do setor privado sobre rios, nascentes e lençóis freáticos, em conluio com uma fatia expressiva dos políticos argentinos. No entanto, a valente reação dos movimentos sociais e de milhares de indivíduos a esses retrocessos tem mostrado a força e a disposição dos cidadãos para exigir que a Argentina vá além da falsa dicotomia entre expansão econômica e desenvolvimento socioambiental.
Vejamos em detalhes o que está acontecendo em Chubut e nas províncias afetadas por Vaca Muerta.
Chubut e a “megamineração”
Comecemos pelo exemplo de Chubut, mais recente e visível na imprensa argentina. Os primeiros meses de 2021, nessa província ao sul do país, foram marcados por expressivas manifestações de rua contra uma tentativa oportunista e desastrada dos congressistas locais de modificar a Lei 5001, aprovada em 2003, que proíbe o uso de substâncias químicas como o cianuro na mineração.
Cientes do impacto que a contaminação por esses produtos poderia provocar às suas fontes de água, milhares de pessoas saíram aos espaços públicos das cidades da província, seguindo as devidas precauções de distanciamento social contra a transmissão do coronavírus, para exigir a manutenção das garantias legais de proteção aos rios da região.
Em uníssono, os manifestantes disseram que não vale a pena expandir essa atividade econômica em troca dos potenciais impactos que a poluição da água pode trazer para a agricultura, o turismo e o próprio abastecimento das comunidades.
Depois de diversos protestos, a reação popular já conseguiu aprofundar o debate sobre o tema na imprensa e nas redes sociais. É verdade que parlamentares provinciais seguem tentando levar adiante a modificação, mas já ficou claro que enfiar essa mudança goela abaixo da população não será nada fácil.
Vitória da proteção às fontes de água
De alguma forma, a luta dos moradores de Chubut em 2021 amplia aquela que os moradores da província de Mendoza levaram adiante, entre 2019 e 2020, para evitar a derrubada de leis que protegiam os cursos d’água contra o uso de metais pesados da mineração. Conhecida mundialmente por seus vinhos de qualidade, a região poderia sofrer impactos econômicos, ambientais e sociais significativos se a atividade extrativista, concentrada na parte mais alta do território, contaminasse as águas que seguem montanha abaixo em direção aos vales, onde os vinhedos se localizam.
Para convencer os congressistas locais a desistir desse passo atrás, pequenos produtores rurais, estudantes e vários outros setores da sociedade civil de Mendoza uniram-se em uma marcha cívica histórica, em dezembro de 2019, que culminou em uma reunião de cerca de 50 mil pessoas na praça onde se situa a sede do Poder Legislativo, no centro da capital. Em apoio à campanha, a 350.org levou ao Poder Judiciário local ações que pediam a invalidação dos projetos de lei que ameaçavam as fontes de água, com base em sólida argumentação jurídica.
Diante da demonstração de vigor da população, os parlamentares decidiram arquivar os projetos questionados, caracterizando assim uma vitória inspiradora dos cidadãos que se uniram pelo meio ambiente.
Os riscos que Vaca Muerta representa
Vejamos, então, o caso de Vaca Muerta. Tal como Chubut e Mendoza, a província de Neuquén, onde a maior parte da reserva de Vaca Muerta está localizada, também se caracteriza por uma situação hídrica que exige cuidados no uso da água. Porém, para as empresas de exploração de gás, racionalidade ou respeito à vida nunca foram um ponto forte.
Para quebrar as rochas que armazenam gás fóssil a quilômetros de profundidade debaixo do chão, companhias como a argentina YPF, a francesa Total e a holandesa Shell usam a técnica do fraturamento hidráulico ou fracking. Proibido em vários países, inclusive na França da Total, o fracking consiste em injetar no subsolo uma mistura de água, areia e produtos químicos, a alta pressão, para romper as rochas e canalizar o gás até a superfície.
Um dos muitos problema dessa técnica é que ela traz graves riscos de contaminação do solo, dos alimentos e de todo o lençol freático ao redor dos poços de onde o gás é extraído. O principal caminho pelos qual essa contaminação pode ocorrer é o dos vazamentos nos quilômetros de tubos necessários para atividade, que se desgastam ao longo do tempo por causa das substâncias químicas que transportam.
Três acidentes por dia
Só para dar uma ideia do tamanho do problema, hoje existem cerca de 336 poços em Vaca Muerta, nos quais a mistura química tóxica inerente ao fracking chega a até três quilômetros para baixo do solo. Cada tubo vertical, porém, se ramifica em várias direções, ha horizontal, em largas extensões. Trata-se, portanto, de uma estrutura de milhares de quilômetros de tubos enterrados, sob constante pressão e pelos quais passam substâncias cuja finalidade é quebrar rochas milenares.
Não é difícil imaginar o potencial para acidentes, e de fato, esse potencial se confirma diariamente. As companhias que atuam em Vaca Muerta admitiram ter registrado, em 2018, uma média de quase três acidentes por dia, de diversas naturezas, em suas operações na região. Só no trecho que se localiza em Neuquén, seis operários morreram em 2020 por causa de acidentes trabalhistas.
Alguns dos acidente em Vaca Muerta ocorrem, inclusive, nos procedimentos de destinação das águas de flowback, ou seja, a água que “sobra” da operação. Funciona assim: depois que a mistura de água, areia e substâncias químicas é injetada e cumpre seu papel de romper as rochas do subsolo, parte do volume total injetado retorna à superfície, como “resto” indesejado do processo industrial. Essa mistura precisa, então, ser corretamente tratada e armazenada, porque é prejudicial ao organismo humano. Em Vaca Muerta, já foram registrados vazamentos nos tanques que armazenam essas águas.
Vazamentos de petróleo também são um problema na região. Em 2018, o Greenpeace e a Farn registraram imagens inéditas de um desses acidentes, que contaminou uma área de pelo menos 85 quilômetros quadrados, a menos de 12 quilômetros do Rio Neuquén.
Agravando a escassez de água
Além do risco de contaminação do conjunto das reservas de água da região, também vale a pena mencionar o elevado consumo de água por parte das empresas que atuam em Vaca Muerta, em uma região de escassez de recursos hídricos.
Segundo relatório da Farn Argentina, no período de 2010 a 2020, foram consumidos em Vaca Muerta mais de 23 bilhões de litros de água doce e 73,2 milhões de litros de aditivos. Para efeitos de comparação, isso equivale a 6800 piscinas olímpicas ou ao consumo anual de água de uma cidade argentina de 211 mil habitantes, levando-se em conta a média nacional de consumo, que é de 299 litros diários por pessoa.
Em outras palavras, Vaca Muerta consumiu, em uma década, quase a mesma quantidade de água que toda a população da capital de Neuquén utiliza em um ano, se considerarmos a média argentina de consumo per capita.
Obviamente, comparações como essa são muito imprecisas, por isso, o objetivo aqui não é apresentar uma tese acadêmica, mas apenas dar uma ordem de grandeza do volume da água que vai parar em Vaca Muerta.
Veja bem, em uma região em que a água é um bem precioso, utiliza-se uma parcela bastante expressiva desse bem para quebrar rochas e liberar um gás que, no fim das contas, vai abastecer outras regiões do país. Cabe, então, perguntar: quem ganha e quem perde com Vaca Muerta?
Os maiores ganhadores claramente são as empresas de combustíveis fósseis que exploram o gás na região, muitas delas multinacionais com acionistas já multibilionários. E os perdedores?
As famílias de Neuquén são as mais afetadas
Para quem já esteve em Vaca Muerta, não há dificuldades em apontar quem mais perde com o fracking. São os moradores de Neuquén e das províncias vizinhas, inclusive famílias de comunidades indígenas Mapuche, que sofrem com o aumento da frequência e da intensidade dos tremores de terra, o agravamento da escassez de água, os riscos de contaminação dos seus alimentos, a dificuldade para vender sua produção agrícola e a elevação da pobreza.
Quem também perde com Vaca Muerta é o contribuinte argentino, que há anos tira dinheiro de seu bolso para que a conta do empreendimento feche no azul. Em 2019, os subsídios para a produção de gás não-convencional na área de Vaca Muerta superaram os 23 bilhões de pesos, o que representa um quarto do déficit fiscal argentino para aquele ano.
Após mais de 10 anos da instalação de Vaca Muerta, o papel do empreendimento como “salvador da economia argentina”, que segundo o discurso oficial seria uma compensação pelos danos à água e ao meio ambiente da região, nunca se confirmou. Enquanto isso, uma parte da população de Neuquén precisa comprar galões de água para seu próprio abastecimento, porque não conta com serviços oficiais de saneamento básico, e outra parte vive com medo de que sua água esteja contaminada ou venha a se contaminar.
Esperança nas mobilizações populares
Com base em exemplos como os de Neuquén, Mendoza e Chubut, podemos dizer que a ideia de que a mineração e os combustíveis fósseis trazem desenvolvimento à Argentina é no mínimo contestável.
Desenvolvimento significa bem-estar para o povo e ampliação das suas possibilidades de vida. O que temos visto nas regiões que se levantam contra a mineração e os combustíveis fósseis é o oposto disso: aumento da pobreza, desperdício do dinheiro público e riscos de contaminação dos recursos naturais mais preciosos, inclusive da água.
Mesmo com todas essas evidências, boa parte dos políticos argentinos mantém seu discurso de que o preço a se pagar pelo “desenvolvimento” seria ceder um pouco do equilíbrio ambiental. Outros, de maneira hipócrita, dizem que a proteção ambiental estaria garantida por essas mesmas empresas e setores que já mostraram estar interessados apenas em seus lucros. Os governantes sabem que essa expectativa é falsa, mas confiam que suas mentiras passarão impunes.
A boa notícia deste Dia Mundial da Água, é as argentinas e os argentinos estão mostrando que, no que depender da sua disposição em lutar pelos recursos hídricos, não haverá espaço para a hipocrisia dos governantes, das companhias de combustíveis fósseis e da megamineração.
Como apontou em um discurso recente o coordenador da Confederação Mapuche em Neuquén, Jorge Nawel, a batalha contra as práticas nocivas do setor extrativista na Argentina é dura e, muitas vezes, desigual. Porém, os argentinos não têm medo de lutar por seus direitos.
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* Peri Dias é gerente de Comunicação da 350.org América Latina