17 fevereiro, 2023

Sete sugestões para aprofundar a cobertura do financiamento ao gasoduto na Argentina

Contexto

A possível participação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) na expansão do gasoduto Néstor Kirchner (NK), na Argentina, gerou uma onda de reportagens, artigos e editoriais em veículos jornalísticos brasileiros, nas últimas três semanas.

O que aqueceu o debate no Brasil foi a menção ao tema pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante sua primeira viagem ao exterior neste terceiro mandato, que incluiu uma visita oficial ao presidente argentino, Alberto Fernández, em 23 de janeiro.

“Se há interesse dos empresários, e há interesse do governo, e temos um banco de desenvolvimento para isso, vamos criar as condições para o financiamento para ajudar o gasoduto [da Argentina]”, disse Lula no encontro com Fernández.

Caso construído nas dimensões propostas pelo governo argentino, o gasoduto poderá permitir a exportação de gás de Vaca Muerta para o Brasil, o que representaria uma contradição com a promessa do presidente Lula de descarbonizar a economia brasileira.

No dia seguinte ao discurso de Lula na Argentina, o BNDES divulgou nota em que negou que haja demanda para financiar “serviços de infraestrutura” no exterior e afirmou que “qualquer alteração nesta política passará necessariamente por um entendimento com o TCU (Tribunal de Contas da União)”.

Porém, o banco também informou que há esforços “no sentido de alavancar a exportação de produtos e bens produzidos no Brasil”. Na mesma data, o ministro da Economia da Argentina, Sérgio Massa, afirmou em entrevista coletiva, ao lado do ministro da Fazenda do Brasil, Fernando Haddad, que o BNDES poderia fazer um aporte de R$ 820 milhões em crédito a empresas brasileiras interessadas em vender insumos para a construção do gasoduto.

Como foi a cobertura

Apesar da sinalização de que o BNDES poderia ser o responsável pela parcela brasileira do financiamento à expansão de Vaca Muerta, por meio de crédito fornecido às empresas que exportarão insumos, o papel do Brasil e do banco estatal no projeto do país vizinho ainda precisa ser melhor esclarecido. Certo é que a mera possibilidade de envolvimento do governo ou do BNDES no empreendimento de energia fóssil deu origem a debates na imprensa sobre questões relacionadas a pelo menos três esferas.

  1. Econômica: alguns dos assuntos mais presentes na cobertura foram os ganhos financeiros que o Brasil pode obter ao financiar o gasoduto e/ou as empresas brasileiras que exportarem seus produtos para o projeto argentino, o risco de calote da Argentina e a capacidade do BNDES de avaliar de maneira “técnica” a relação risco x benefício desse tipo de crédito.
  2. Política: diversas reportagens, artigos e editoriais concentraram-se em destrinchar o que o financiamento ao gasoduto representaria, sob aspectos como o retorno do Brasil a uma política externa mais assertiva, a reconstrução de laços diplomáticos com governos latino-americanos no período pós-Bolsonaro e as lições aprendidas ou ignoradas pelo PT a partir das experiências anteriores de financiamento a obras no exterior.
  3. Socioambiental: várias matérias focaram o potencial impacto socioambiental do gasoduto ou o impacto já existente da exploração de gás e petróleo da reserva de Vaca Muerta, à qual o gasoduto está ligado. Também foram frequentes as explicações sobre o que é gás de xisto e como funciona a técnica do fracking, com o uso de gráficos e falas de especialistas. Houve também uma participação expressiva de ONGs (incluindo a 350.org) e pesquisadores, para esclarecer quais são as alternativas às energias fósseis como as de Vaca Muerta, bem como de lobistas setoriais, que tentaram aproveitar a ocasião para vender o gás brasileiro como “mais limpo” do que o argentino. Vale lembrar que nenhum gás fóssil é limpo, já que essa fonte energética agrava a crise climática e, em muitos casos, provoca sérios danos socioambientais.
Sugestões para aprofundar a cobertura

Considerando-se a dimensão do projeto argentino e de seus desdobramentos para o Brasil em diversas áreas, é razoável supor que a história da possível participação do BNDES ou de ministérios do governo brasileiro na expansão do gasoduto Néstor Kirchner seguirá em destaque pelos próximos meses.

Na esperança de contribuir com o debate sobre a transição energética na América Latina, foco do trabalho da 350.org, reunimos aqui sete sugestões que, na nossa perspectiva, ampliariam ainda mais a pluralidade, a precisão e a relevância da cobertura jornalística do tema.

1. Abordar os impactos socioambientais do gasoduto em todas as matérias
Vaca Muerta é uma bomba climática e socioambiental. A exploração de petróleo e gás na Patagônia é alvo de forte oposição das comunidades locais e coloca a Argentina – e potencialmente Brasil – em conflito com suas metas climáticas, um fator cada vez mais importante no cenário político-econômico global. Em uma matéria sobre o gasoduto NK, sequer mencionar esses aspectos significa dar uma visão incompleta do projeto ao público, inclusive do ponto de vista estritamente financeiro, uma vez que riscos socioambientais elevados aumentam o custo de operação e ameaçam a segurança do investimento.

2. Lembrar dos custos coletivos de Vaca Muerta
A extração de petróleo e gás em Vaca Muerta só surgiu e cresceu graças ao apoio generoso do Estado argentino às empresas do setor, por meio de políticas como a determinação de um preço fixo para o barril e a oferta de subsídios às multibilionárias companhias fósseis que atuam no país. Estudo divulgado em 2022 pela ONG argentina FARN mostrou que as transferências de recursos públicos às empresas petrolíferas e gasíferos, só em 2020, somaram 645 milhões de dólares. Além disso, outros custos coletivos, como os danos à saúde pública provocados pela queima do petróleo e do gás extraídos nessa reserva, recaem sobre o cidadão argentino e dos países que compram esse combustível, o que o Brasil pode passar a fazer, se o gasoduto for construído. Levantamento publicado pela 350.org e pela consultoria Profundo, em outubro de 2022, mostra que a soma de todos os custos ocultos de Vaca Muerta para a sociedade global, nos próximos 30 anos, pode ultrapassar 5,6 trilhões de dólares. Evidenciar esses impactos econômicos negativos do projeto, nas matérias sobre o assunto, amplia a compreensão do público sobre quem ganha e quem perde com as decisões tomadas pelos governos envolvidos.

3. Comparar o gás com outras fontes de energia
O custo-oportunidade de financiar ou investir no gasoduto NK, ou seja, aquilo que o Brasil deixa de ganhar ao destinar recursos para esse projeto, e não para outro, é bastante elevado. Isso vale, inclusive, para o caso de o financiamento do BNDES se restringir a empresas brasileiras que exportam insumos para o gasoduto. De maneira geral, quando comparadas com os combustíveis fósseis, as energias renováveis tendem a gerar mais empregos e condições de trabalho melhores, a reduzir o custo da energia para o consumidor final, a ampliar a soberania energética das populações atendidas e a diminuir riscos socioambientais da geração e distribuição de energia. Do ponto de vista climático, sobretudo, substituir rapidamente as energias fósseis pelas renováveis é uma condição para evitar os piores cenários da crise climática e salvar milhões de vidas em todo o mundo. Brasil e Argentina têm condições de colaborar e se apoiar mutuamente na transição energética, com múltiplos benefícios para os dois países. O BNDES, inclusive, pode se tornar referência global em financiamento à renováveis, se houver vontade política para tal. Ao cobrir as escolhas do governo brasileiro, mencionar essas possibilidades e as muitas análises já realizadas por ONGs e centros de pesquisa sobre as vantagens das energias renováveis ajuda a ampliar a pluralidade de visões refletidas na matéria e a oferecer ao público elementos para formar uma opinião própria mais embasada.

4. Não reproduzir mitos criados pelos lobistas do gás
Para evitar que o lobby bilionário do setor de petróleo e gás comprometa a qualidade do trabalho jornalístico, há pelo menos três práticas que poderiam ser implantadas imediatamente nas redações.

a) Abolir o termo “gás natural” – Esse termo foi impulsionado pelo próprio setor de petróleo e gás e induz a uma interpretação incorreta de que essa seria uma energia limpa. Na verdade, trata-se de uma mistura de derivados de combustíveis fósseis, que agravam o aquecimento global ao serem queimados. O termo “gás fóssil” indica melhor a origem e o impacto dessa fonte de energia.

b) Nunca dizer que o gás é uma energia “de transição” ou que é “mais limpa” – Essas afirmações são factualmente incorretas. Gás é combustível fóssil, portanto, não é parte da transição energética e nem é limpo. O principal painel de cientistas climáticos do mundo, o IPCC, e o secretário-geral da Organização das Nações Unidas já fizeram apelos enfáticos para o mundo interromper a expansão de todos os combustíveis fósseis e substituí-los por energias renováveis, se quisermos alcançar as metas climáticas que protegerão a humanidade das piores catástrofes e perdas.

c) Eliminar a ideia de que o gás extraído no Brasil é mais limpo do que o da Argentina – Lobistas aproveitaram a discussão sobre Vaca Muerta para argumentar que o Brasil deveria investir no gás em território brasileiro, e não no argentino, inclusive porque esse seria “mais amigável” com o meio ambiente. Essa afirmação é falsa. Riscos socioambientais elevados são inerentes à extração e ao transporte de petróleo e gás. Pequenos acidentes ocorrem com frequência,  e os grandes, quando ocorrem, geram desastres monumentais. O desrespeito com as comunidades também é a regra desse setor. A extração de gás na Amazônia brasileira realizada pela Eneva, por exemplo, tem sido alvo de protestos frequentes de comunidades indígenas do povo Mura do sul do Estado. No Maranhão, a Eneva planeja começar a extrair gás fóssil usando o fracking, técnica destrutiva, predominante em Vaca Muerta,  que o setor de gás no Brasil agora ataca, mas que convenientemente defende, quando se discute que essa possibilidade seja implementada no país.

5. Incluir as vozes das comunidades afetadas pelo empreendimento
Ouvir todos os lados da história que se cobre é uma das regras do bom jornalismo. No caso da extração de petróleo e gás em Vaca Muerta, um desses lados é o das comunidades afetadas pela atividade extrativa. Indígenas, pequenos produtores e trabalhadores da periferia dos municípios onde o gás é extraído sofrem cotidianamente impactos como pequenos terremotos, que trincam as casas e expulsam famílias da região, risco de contaminação do solo e da água, que geram danos à saúde das famílias e ao valor das propriedades rurais, e elevadas taxas de alcoolismo e uso de drogas, agravados pela dinâmica econômica da região. Alguns veículos brasileiros já incluíram representantes indígenas do povo Mapuche em suas reportagens, uma ótima prática, nesse caso. Vemos como situação ideal que as comunidades sempre sejam ouvidas nas matérias sobre Vaca Muerta, inclusive porque fazem o necessário contraditório ao discurso oficial do governo argentino e das empresas do setor, que são partes interessadas em esconder os danos provocados pelo megaprojeto fóssil. A 350.org e outras ONGs que atuam na Argentina, como a FARN e as associações comunitárias do povo Mapuche, podem ajudar jornalistas a encontrar fontes nas comunidades afetadas.

6. Explicitar as ligações das fontes e dos veículos com o setor
Um valor jornalístico importante é a “separação de balcões” entre o setor comercial do veículo e a redação. Nos últimos meses, especiais sobre petróleo e gás patrocinados por empresas do setor têm vindo a público. Seria interessante repensar essa prática e, no caso da cobertura sobre Vaca Muerta, evitar que isso aconteça. Além disso, também seria um serviço ao público identificar a relação entre as fontes ouvidas e as empresas do setor. Há casos de analistas frequentemente entrevistados que trabalham regularmente como consultores para empresas do setor, mas que, ao serem entrevistados pelos jornalistas, não mencionam essa conexão. A participação desses analistas nas reportagens é legítima, mas convém ao jornalista perguntar à fonte se ela trabalha para alguma parte interessada e, se a resposta for positiva, deixar clara essa relação na reportagem.

7. Abrir espaço para artigos escritos por fontes diversas
Por fim, a pluralidade de fontes também tende a ser benéfica ao público no que se refere aos artigos assinados por colaboradores de fora do veículo. Ao abrir espaço para a publicação de um texto que expresse a opinião de uma associação do setor ou de um analista ligado às empresas da área, por que não oferecer também um espaço equivalente a um pesquisador, uma ONG ou um representante comunitário que aponte os danos que a atividade gasífera provoca? É uma ótima maneira de colocar em prática a valorização da diversidade e de seu potencial de abrir portas a novas compreensões da realidade.


Contato para a imprensa

Peri Dias
Comunicação da 350.org na América Latina
[email protected] / +351 913 201 040