Por Peri Dias*

Pela brilhante charge que aparece no topo deste post, desenhada por Nando Motta, você já deve ter reconhecido um dos casos ao qual vamos nos referir neste post, o do garoto João Pedro, que morreu baleado, dentro de casa, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, após uma ação conjunta das polícias Civil e Federal.

Porém, esse não foi o único incidente a chocar o Brasil nos últimos três meses. Casos que apontam para as muitas faces do racismo no país ganharam destaque recentemente e impulsionaram o debate público sobre o tema. Listamos aqui três dessas situações e o que elas indicam a respeito da questão racial brasileira.

Esperamos que isso contribua para uma reflexão sobre o racismo não só como uma atitude de algumas pessoas, mas como um sistema em que todos nós estamos imersos – e que precisamos superar.

João Pedro e a violência policial  

O caso: Em maio, João Pedro, um garoto negro de 14 anos, foi assassinado por policiais enquanto jogava bilhar com amigos da mesma idade, em sua própria casa, em São Gonçalo, no Grande Rio de Janeiro. Policiais entraram atirando, por acreditar que bandidos estavam escondidos ali. Depois, os policiais levaram o corpo do garoto, e sua família ficou 14 horas sem notícias do adolescente. O caso levou muitos brasileiros a questionar se a Polícia teria agido da mesma maneira caso a operação tivesse ocorrido em um bairro rico e de maioria branca.

O contexto: o episódio envolvendo João Pedro é representativo do perfil de quem é morto pela Polícia no Brasil: mais de 75% dos assassinatos cometidos por policiais, em 2019, foram de pessoas negras, em sua maioria jovens de bairros pobres, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Mirtes e a desigualdade de renda

O caso: Em maio, o menino negro Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, morreu depois de cair do nono andar de um prédio de classe alta no centro do Recife. Sua mãe, Mirtes, é empregada doméstica e trabalhava para uma família moradora daquele prédio. Ela havia levado o garoto à casa da patroa, porque fora convocada a trabalhar, mesmo em um período de restrições à circulação por causa da pandemia, e não tinha com quem deixá-lo.

Quando Mirtes saiu para passear com os cachorros da família, deixou o garoto sob os cuidados da patroa, branca. O garoto começou a procurar a mãe, e a patroa, ao invés de distraí-lo, colocou-o no elevador do prédio, sozinho, e deixou que ele ficasse lá. Ao chegar ao nono andar, Miguel saiu do elevador, abriu uma porta que dava acesso a uma área com vista para a rua e, quando se debruçou para tentar enxergar a mãe, caiu e morreu.

Depois de ser presa, a patroa pagou fiança e está esperando em liberdade pela investigação. Mirtes perdeu o filho de cinco anos e vive o luto em sua casa, na periferia do Recife.

O contexto: Mirtes faz parte de um grupo que, antes da pandemia, reunia 6,2 milhões de brasileiros, o de empregados domésticos. Desses, 3,9 milhões (62%) são mulheres negras. Cerca de 18% das mulheres negras têm como profissão o serviço de faxina na casa de outras pessoas, um dos fatores que ajudam a explicar porque esse é o grupo de menor renda no Brasil. As pessoas negras também sofrem mais com o desemprego, o subemprego e a informalidade, como aponta esta matéria da revista Piauí, de novembro de 2019. 

O bebê xavante e a pandemia nas Terras Indígenas e periferias

O caso: Um bebê de oito meses morreu de Covid-19, em maio, na Terra Indígena (TI) Marãiwatsédé, do povo xavante, no município de Bom Jesus do Araguaia, em Mato Grosso. No funeral do bebê, os indígenas seguiram os procedimentos fúnebres habituais em enterros, com caixão aberto, o que pode ter contribuído para a “transmissão descontrolada” do vírus na aldeia da família da criança, segundo a Operação Amazônia Nativa. Os indígenas, assim como a equipe de saúde que acompanha os moradores da aldeia, alegam que não foram informados sobre a suspeita de Covid-19.

O contexto: Esse caso é só mais um entre os muitos exemplos de como a pandemia vem se espalhando por aldeias indígenas Brasil afora. Líderes indígenas, profissionais de saúde e ONGs denunciam as invasões das TIs por madeireiros, grileiros e produtores rurais como um dos principais fatores de transmissão da doença. Além disso, apontam a precariedade na assistência de saúde às aldeias e a insuficiência de ações educativas e preventivas voltadas a Povos Indígenas, em seus idiomas e mais próximos de suas realidades, como outra causa da disseminação acelerada do coronavírus.

Assim como as pessoas negras, indígenas são alvo de racismo no Brasil. A desinformação, a indiferença e mesmo o ódio em relação aos povos nativos refletem-se em ações criminosas contra essas comunidades, a exemplo das invasões de seus territórios, e em políticas públicas insuficientes, que deixam esses povos ainda mais vulneráveis a problemas como a pandemia.

Já nas cidades, o coronavírus se espalhou dos bairros mais ricos para os mais pobres, áreas onde faz, atualmente, muito mais vítimas do que nas regiões de alta renda. A desigualdade social virou um fator de risco inclusive para crianças, e como negros e indígenas têm, em média, renda mais baixa do que os brancos, no Brasil, também neste caso estão mais expostos. Segundo dados do Ministério da Saúde, 57% das pessoas que morreram por causa da Covid-19 no Brasil são negras.

Como mostra esta reportagem do UOL, uma pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) constatou que a Covid-19 mata 55% dos negros internados em hospitais por causa da doença, ante 38% dos brancos. 

Uma possível interpretação para essa diferença, ainda sem comprovação, é o fato de que, proporcionalmente, mais negros têm doenças que agravam o risco de morte pelo coronavírus, como diabetes e hipertensão, do que os brancos. 

As pessoas negras também estariam mais representadas entre aqueles que estão na linha de frente dos serviços essenciais, como atendimento à saúde, faxina e entrega de produtos. De acordo com o Conselho Nacional de Enfermagem, 53% dos enfermeiros que estão cuidando de pacientes com o coronavírus são negros

Ainda pode contar o fato de que, proporcionalmente, mais pessoas negras dependem de serviços de saúde precários. O risco de morte em hospitais de regiões com baixo e médio Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é o dobro do apresentado em hospitais com alto IDH. 

O que fazer diante desse quadro?

Mais uma charge brilhante do Nando Motta: homenagem ao Miguel, o garoto de cinco anos de idade que caiu do nono andar de um prédio, no Recife, e à Mirtes, mãe do menino.

Pessoas que estudam e vivem o racismo dizem que uma das melhores ações que podemos tomar, individualmente, contra o racismo é ouvir e aprender com negros e indígenas como esse problema se manifesta. 

A 350.org vai oferecer suas redes sociais, por uma semana, para pessoas que estejam dispostas a compartilhar suas experiências e visões sobre o tema.

Também já publicamos quatro posts, recentemente, sobre racismo no Brasil. Veja só:

Além disso, nos próximos dois posts desta série sobre racismo e clima, vamos contar por que acreditamos que a justiça climática está intimamente relacionada à luta antirracista, além de oferecer algumas sugestões de como podemos aprender sobre racismo e agir para eliminá-lo.

Continue com a gente! :-)

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Peri Dias é gerente de Comunicação da 350.org na América Latina