A preocupação com o bem-estar das futuras gerações de seu povo e com a preservação do território indígena fez com que a vida de Lindalva Tikuna Félix Zaguri, 43 anos, tivesse uma guinada a partir dos seus 22 anos, que está longe de acabar, duas décadas depois. Conhecer parte de sua história nos faz compreender o que mobiliza muitos guardiões da floresta indígenas pelo Brasil. Em dados momentos, sua trajetória parece até um roteiro de filme, mas no fundo, descreve uma realidade que também é vivenciada por outros indígenas no país. Uma ligação forte com sua ancestralidade frente aos desafios da sociedade contemporânea. 

“Em nenhum momento esqueço da Aldeia Feijoal, em Benjamin Constant, Amazonas, divisa com a tríplice fronteira, onde estão minhas raízes e família. Temporariamente estou longe, mas é para onde vou voltar”, afirma. Destino que sempre volta nos períodos de férias.

Por que ela está afastada de seu povo? Podem estar perguntando, não é? Hoje, Lindalva está temporariamente em Brasília, em função de um motivo especial: está cursando a Faculdade de Medicina, na Universidade de Brasília (UnB). Desde 2012, enfrenta alguns intervalos na participação no curso, por motivos de saúde e de mudanças de currículo e pessoais, entre outros, mas não desiste de seu objetivo, mesmo tendo de trancar a matrícula em alguns semestres. “A minha meta é me formar em clínica médica e me especializar em cirurgia geral”. Ao ser perguntada sobre o porquê desta iniciativa e persistência, sem titubear, responde: “Para cuidar dos meus parentes na minha aldeia e ajudar os que vão para o hospital. Pretendo também trabalhar com a medicina tradicional de meu povo”, diz, respeitando também a sabedoria dos pajés.

Lindalva Tikuna - da Amazônia - 10/2019

Lindalva Tikuna, em evento Diálogos Envolverde – Um Olhar sobre a Amazônia – Crédito da foto: Sucena Shkrada Resk/350.org Brasil

 

Segundo ela, a preocupação dela e de muitos parentes nas aldeias na Amazônia atualmente é com relação a invasões dos territórios indígenas, principalmente com relação à segurança e qualidade de vida das crianças. “Quem vai sofrer mais se a gente não preservar a natureza? São os que estão crescendo agora. A poluição da água, o desmatamento por invasões em TIs de diferentes povos já são uma realidade. E isto não interfere somente em nossa vida, mas de toda sociedade brasileira. Quando a gente pensa no futuro, tudo que vem da natureza, das plantas, das águas, como os medicamentos, está em jogo hoje. E se tudo isso for destruído?”, questiona Lindalva, que é mãe de dois filhos. 

A indígena Tikuna percebe que a saúde ambiental está relacionada também à incidência de doenças que atingem povos indígenas. “São problemas que estão crescendo por causa das mudanças climáticas e da intervenção humana. O governo precisa se preocupar com isso”, alerta.

A natureza para o indígena é sagrada, segundo ela. As árvores são respeitadas por nós, por isso cuidamos e preservamos a natureza. Hoje estou na universidade, com bolsa de R$ 900. Só consigo pagar o aluguel, mas não dá para sobreviver. Então continuo fazendo meu artesanato, com sementes e folhagens. É esta natureza que me sustenta, me dá força e me guia onde eu estiver”, afirma salientando sua gratidão.

Mas a vontade de contribuir para o bem-estar de seu povo vem desde sua infância e teve forte influência de sua avó. É aí que as raízes falam mais alto. “Eu queria fazer Medicina, desde criança. Minha avó era parteira e também benzedeira. Eu a acompanhava e via quando tratava das mulheres com remédios vindos da terra, e fazia parto normal. Eu queria ser igual a ela, poder ajudar a curar as pessoas”, conta. Já o pai extrai da natureza medicamentos naturais, como óleo de andiroba e copaíba, que integram esta relação com o meio ambiente.

Um fato que a marcou, entretanto, para seguir sua jornada até o momento, aconteceu quando tinha 13 anos, ao ver uma parente morrer por falta de assistência à saúde mais próxima da aldeia à época. “Antes de conseguirem chegar ao hospital, ela faleceu no caminho. Depois disso, coloquei na minha cabeça, que tinha de estudar, para poder contribuir de alguma forma. Até então, ainda nem tinha feito a primeira série do fundamental. Com 22 anos, fui para Manaus, e terminei o ensino médio com 28 anos. Depois fiz curso técnico, formei minha família e voltei para a minha aldeia”.

Agora, nos últimos anos, Lindalva Tikuna, enfrenta um novo desafio. Está imersa na sua formação universitária, aquele sonho que não adormeceu. Ela afirma que continua engajada em defesa dos povos indígenas, mesmo longe temporariamente de sua aldeia. O meio que encontrou foi de se unir a ‘parentes’, na associação de estudantes indígenas de sua universidade, onde só neste ano, houve o interesse de mais 198 indígenas para cursar Medicina; e 86, Enfermagem, entre outros cursos. Imaginem quantas histórias interessantes estão por trás dessas escolhas, como a dela…

Sobre a 350.org no Brasil e a causa climática 

A 350.org é um movimento global de pessoas que trabalham para acabar com a era dos combustíveis fósseis e construir um mundo de energias renováveis e livres, lideradas pela comunidade e acessíveis a todos. Nossas ações vêm ao encontro de medidas que visem inibir a aceleração das mudanças climáticas pela ação humana, que incluem a manutenção das florestas.

Desde o início, trabalha questões de mudanças climáticas e luta contra os fósseis junto às comunidades indígenas e outras comunidades tradicionais por meio do Programa 350 Indígenas e vem reforçando seu posicionamento em defesa das comunidades afetadas por meio da campanha Defensores do Clima. Mais uma vertente das iniciativas apoiadas pela 350.org é da conjugação entre Fé, Paz e Clima.

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Sucena Shkrada Resk – jornalista ambiental, especialista em política internacional, e meio ambiente e sociedade, é digital organizer da 350.org no Brasil

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