Neste 5 de setembro, Dia da Amazônia, um olhar sob o prisma da geografia humana, que vê a relação da sociedade e espaço, está sendo colocada sobre esta região do planeta mais rica em biodiversidade, que abriga a maior floresta tropical em extensão, com 5,5 milhões de km², aqui no Brasil, e hidrografia pujante. Por qual motivo? A olhos nus, é possível ver uma pressão crescente sobre a sua conservação. A combinação de desmatamento, queimadas, incêndios, agropecuária extensiva e instalação de grandes empreendimentos conjugados com o avanço das mudanças climáticas se retroalimentam. Afetados por essas pressões, estão povos tradicionais e indígenas, que ao longo dos séculos, se tornaram os principais defensores da natureza e do clima neste bioma.
Quem são estes povos? De acordo com a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), de 2007, são: “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”. Neste grupo, estão indígenas, quilombolas, caboclos, comunidades tradicionais de matriz africana ou de terreiro, extrativistas, ribeirinhos e pescadores artesanais, entre outros.
“Os povos tradicionais da Amazônia vivem da água, da floresta e da terra. Qualquer movimento que vem no sentido de eliminação disso, prejudica a segurança destas populações. Vai ter repercussão sobre a água e a pesca, que são fundamentais no processo de alimentação. Estão sendo cada vez mais vitimizados pela expansão de outras atividades que não dizem respeito à exploração tradicional da floresta”, afirma o Doutor em Geografia Ricardo José Batista Nogueira, professor associado da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), especialista em Amazônia e Meio Ambiente.
Segundo Nogueira, estas atividades tradicionais estão ligadas a cascas, folhas, palhas, madeiras, sementes e frutos, e caças de algumas espécies para subsistência. “Com a vinda de movimentos de atividades agrícolas diferentes, estes modos de vida são impactados. A natureza muda, com essa substituição florestal”, explica.
Para o também Doutor em Geografia Valter do Carmo Cruz, professor da pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF), o desafio hoje é encontrar uma alternativa de desenvolvimento que realmente inclua os povos tradicionais e indígenas da Amazônia. “O que existe atualmente são dois modelos de desenvolvimento territorial de capitalismo econômico que excluem estas populações. De um lado, com foco em commodities, baseado o extrativismo mineral, agrícola e de madeira. Por outro lado, existe uma ‘economia verde’, de mercado de carbono, que teoricamente inclui estes povos, mas numa condição subalterna”, avalia.
Segundo Cruz, há uma necessidade de se criar um novo caminho, que parta do princípio do respeito à diversidade dos saberes e das culturas dos povos tradicionais e indígenas, incluindo-os no debate ambiental, com protagonismo e autonomia. “É preciso discutir hoje o modelo de ocupação e econômico da Amazônia, o que leva às queimadas, ao desmatamento e às mudanças climáticas. Como também a compreensão da diversidade produtiva, cultural, de apropriação do conhecimento, e da importância destes povos, o que não acontece hoje”.
O Doutor em Geografia Humana Josué da Costa Silva, professor titular do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) é mais incisivo: “Um dos principais desafios é a garantia da própria existência desses povos. Há um processo de transformação intensa de reorganização do espaço que eles já haviam conquistado. Os grupos indígenas, por exemplo, precisam ter condições de reorganizar o seu acervo cultural e saberes e, com isso, poder se fortalecer nestas lutas maiores”, considera.
Silva explica que as comunidades tradicionais e indígenas têm seus “tempos e espaços” específicos. “É o tempo da colheita da castanha, do açaí, de pescar determinadas espécies de peixes. Também relacionado a contextos dos movimentos das águas, quando usam canoas ou rabetas e barcos de linha. Ou como o rio vai se modificar ao longo do ano e onde vai inundar. Tudo isso gera uma percepção própria, e precisam ser compreendidos nessas especificidades e saberes ligados às suas estratégias de sobrevivência”, afirma.
Pressões sobre a Amazônia e seus povos
O avanço do agronegócio sobre as Tis é extremamente preocupante na sua avaliação. Há uma negligência do poder político no país, de acordo com Silva. “Há povos mais articulados e outros em quadros de maior fragilidade, que perderam suas aldeias, suas terras e estão dispersos. Acredito que há uma necessidade de se reorganizarem, de pensar suas próprias articulações”, diz o professor da UNIR. Mais um aspecto a ser ressaltado é quanto à segurança de povos isolados. Estima-se que sejam mais de 120 grupos, segundo a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Como também das comunidades quilombolas.
Outro aspecto importante, de acordo com Nogueira, da UFAM, é a reflexão sobre o impacto dos grandes empreendimentos. “No estado do Amazonas, por exemplo, há o gasoduto Urucu-Coari-Manaus, de cerca de 500 km, que rasga boa parte da floresta. Parte do gás tem sido utilizada para a indústria. Já o petróleo nesta parte específica da Amazônia é muito fino e parte tem sido encaminhado para outras refinarias para fazer o refino. A gente torce que não haja nenhum vazamento ou acidente, que possam comprometer rios, lagos e vegetação”, alerta.
Cruz, da UFF, explica que na última década houve uma retomada importante da exploração mineral na região e o preço das commodities no mercado internacional teve um aumento significativo. “A conexão com a China, que é maior compradora do Brasil, se ampliou muito, porque tem uma economia de escala. Houve uma concentração intensa de mineração principalmente no Pará. Esta indústria é eletro-intensiva, precisa de muita energia, consequentemente foram construídas hidrelétricas, com grande impacto. E a indústria precisa de portos, ferrovias e estradas que também ampliam estas pressões em especial na Amazônia Oriental e Pará, que não por acaso, tem altos índices de desmatamento. Por outro lado, há desigualdade de distribuição neste contexto”, afirma Cruz.
Em Rondônia, Silva observa também a pressão sobre os indígenas e os pequenos agricultores. “Há uma varredura feita pelo negócio do monocultivo em larga escala. As comunidades ribeirinhas sendo atingidas por duas grandes usinas hidrelétricas. É um processo de interferência muito grande. Como muitas fontes de riqueza mineral estão em Tis, também há grande pressão. É a Amazônia sendo tomada pelo capital”, avalia o professor da UNIR.
Ao ampliar a análise, na avaliação de Cruz, da UFF, a lógica da integração na Pan-amazônia (Colômbia, Peru, Venezuela, Equador, Bolívia, as Guianas e o Suriname, além do Brasil) é das commodities hoje e não pelos povos. “No entanto, as áreas mais preservadas são onde se concentram os povos indígenas. Qualquer debate que não inclua estes povos como atores, é um debate falacioso, que tenta transformar em mercadoria, o que não pode, que é a natureza”, diz.
Fazendo uma análise de possíveis cenários, Nogueira, da UFAM, explica que até agora o que se tinha de horizonte presente e futuro na região, é que a conservação da floresta amazônica tem como estratégico alicerce a manutenção e ampliação de terras indígenas (TIs) e de unidades de conservação (UCs). Hoje são respectivamente mais de 420 Tis, que ocupam 23% do território amazônico, e de 120 UCs federais, além de estaduais e municipais. “Parece que isso tende a mudar. Atualmente há um cenário político de propensão para suspensão de demarcações e de novas criações de UCs, o que pode abrir um precedente perigoso para a pressão do desmatamento ilegal”.
Os três especialistas foram entrevistados pela 350.org Brasil, em São Paulo, nesta terça-feira (03/09), quando participaram da mesa “Amazônia além fronteiras: sociais, naturais e epistêmicas, que integra a programação do XIII Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia, que tem como tema central – “A Geografia Brasileira na Ciência-Mundo: produção, circulação e apropriação do conhecimento”. O evento foi realizado na Universidade de São Paulo (USP).
Sobre a 350.org Brasil e os defensores do clima
A 350.org é um movimento global de pessoas que trabalham para acabar com a era dos combustíveis fósseis e construir um mundo de energias renováveis e livres, lideradas pela comunidade e acessíveis a todos. Nossas ações vêm ao encontro de medidas que visem inibir a aceleração das mudanças climáticas pela ação humana, que incluem a manutenção das florestas.
Desde o início, trabalha questões de mudanças climáticas e luta contra os fósseis junto às comunidades indígenas e outras comunidades tradicionais por meio do Programa 350 Indígenas e vem reforçando seu posicionamento em defesa das comunidades afetadas por meio da campanha Defensores do Clima.
Sucena Shkrada Resk – jornalista ambiental, especialista em política internacional e meio ambiente e sociedade, é digital organizer da 350.org Brasil
Veja também:
A proteção da Amazônia ecoa na voz da mulher indígena
Entrevista especial: da Amazônia à Conferência do Clima, especialista brasileiro alerta
Relatório especial do IPCC/ONU destaca a relação do uso da terra com as mudanças climáticas
A hipótese da savanização da Amazônia se torna cada vez mais provável
Mais de 91 mil focos de calor registrados até final de agosto, o número ultrapassa em 67% a quantidade de 2018
Toda mulher indígena já nasce com a missão de ser mulher forte