• Por Peri Dias* 

No fim de 2019, quando uma mancha de óleo de origem desconhecida se espalhou pela costa de 11 estados brasileiros, pelo menos 60 mil famílias de pescadores, marisqueiras e trabalhadores do turismo perderam temporariamente suas fontes de renda e tiveram que agir por conta própria para promover limpezas nas praias, arriscando a própria saúde, diante da atuação insuficiente dos governos. 

A grande maioria das pessoas prejudicadas por esse vazamento era composta por moradores de áreas de baixa renda ou de comunidades tradicionais, onde em geral predominam as populações pretas e pardas. 

Na avaliação de pesquisadores da vida marinha e das populações humanas do litoral do Brasil, o governo federal agiu tarde, sem empenho e com pouca eficiência para apoiar os indivíduos afetados, proteger o ambiente do espalhamento da mancha e punir os responsáveis pelo desastre. De fato, o governo nunca conseguiu nomear os culpados, e o caso passou para o esquecimento, soterrado por outras tragédias.

Durante a COP25, realizada em dezembro de 2019, em Madri, líderes indigenas brasileiros protestam contra o vazamento de óleo no Nordeste do Brasil.

Esse é um entre os muitos exemplos recentes de como os impactos dos problemas ambientais, no Brasil, afetam desproporcionalmente as pessoas negras e os indígenas. É possível argumentar que esses grupos sofrem mais porque, na média, são mais pobres. Porém, em nosso país, o recorte social não exclui o recorte racial. Ou seja, as pessoas que têm baixa renda e são negras ou indígenas sofrem duplamente, porque suas vidas, suas comunidades e os locais onde elas vivem valem menos, em nosso imaginário coletivo.

Além disso, o próprio fato de as pessoas negras serem, em média, mais pobres do que as brancas é uma das facetas do racismo, como já discutimos nos posts anteriores desta série. Não é obra do acaso que a pobreza tenha cor no Brasil. Isso é resultado de séculos de história escravagista e da ausência de políticas efetivas, no presente, para corrigir as barbaridades do nosso passado. 

Você consegue imaginar uma mancha de óleo como essa afetando Jurerê Internacional, a praia de Santa Catarina onde os ricos do Sul e Sudeste passam férias, e a tragédia ficando por isso mesmo? É difícil acreditar que não haveria um empenho maior dos governos em resolver a situação e encontrar a origem do vazamento. 

Pois é, essa diferença de tratamento entre ricos e pobres, negros e brancos, por parte do poder público e da sociedade geral, manifesta-se claramente nas questões ambientais e climáticas. Isso é o racismo ambiental.

Racismo ambiental no litoral, no campo, nas florestas e nas cidades

Os sucessivos casos de desrespeito aos direitos humanos pela indústria de combustíveis fósseis mostram que as empresas do setor estão entre as campeãs globais da perpetuação do racismo ambiental. Quase sempre, as comunidades de pretos, pardos e indígenas são as que mais sofrem com vazamentos de óleo no mar e nos rios, como o ocorrido no Brasil, além da contaminação do ar, das águas e do solo pelo carvão e pelo fracking.

Porém, a conexão entre o racismo e impactos ambientais não se restringe a esse setor. Nos três primeiros meses de 2020, quando tempestades inundaram enormes áreas urbanas em Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo, quem pagou o preço mais alto foram as famílias negras das periferias das cidades, que perderam vidas em soterramentos e afogamentos. Só no primeiro trimestre deste ano, os temporais deixaram pelo menos 100 mortos e destruíram as casas de mais 11 mil pessoas, em lugares como o Morro do Macaco, no Guarujá (SP). 

No campo e nas florestas, não é diferente. As invasões às Terras Indígenas e as queimadas em seu entorno, que afetam profundamente a vida nas aldeias, também são manifestações de racismo, assim como o assassinato de líderes comunitários nos assentamentos rurais e nos seringais.

Para muita gente, as culturas indígena e ribeirinha são um entrave ou um “atraso a ser superado”, como se os atrasados fossem eles, que conservam melhor do que ninguém as florestas que garantem a todos os brasileiros a chuva e a estabilidade do clima necessárias à vida. 

Quando alguns grupos de pessoas “valem pouco”, acabamos naturalizando a destruição das suas casas, terras, culturas e vidas. Fica mais fácil dizermos: “Que pena que morreram!” e seguirmos adiante sem mudar nada. É exatamente por isso que o racismo, esse conjunto de fatores que fazem pretos, pardos e indígenas serem menos importantes para nossa sociedade do que os brancos, está na base da crise climática.

Racismo é pai e irmão da crise climática

Além de ser um dos pais da destruição ambiental, já que torna mais aceitáveis os impactos sobre os grupos que “valem menos”, o racismo é também irmão da crise climática. O que nos trouxe à situação emergencial do clima em que nos encontramos foi a recusa de alguns detentores de poder político e econômico em mudar nossa forma de organizar a sociedade. 

Para ficar em um exemplo, há evidências de que empresas de combustíveis fósseis como a Exxon já sabiam, há cerca de quatro décadas, que as emissões provocadas pela queima de petróleo, gás e carvão levariam o mundo à beira do colapso, mas preferiram gerar dúvidas sobre a influência humana no clima, porque senão teriam que deixar de lado um sistema muito lucrativo.

Da mesma forma, os países colonizadores, bem como as empresas e as pessoas que se beneficiaram do tráfico de pessoas e do trabalho escravo, sabiam que estavam implantando sistemas arrasadores para gerações de pretos, pardos e indígenas. Porém, vender pessoas e usar sua força de trabalho de graça ou pagando salários miseráveis foi lucrativo demais para que vidas negras e indígenas importassem. 

Mesmo em 2020, quando olhamos o abismo na renda e nas condições de trabalho de brancos e pretos no Brasil, fica claro que manter um sistema em que uns valem menos do que outros continua a ser um bom negócio para muita gente.

Sem igualdade racial, não há justiça climática

Continuará a ser impossível resolvermos a crise climática enquanto ainda naturalizarmos que alguém seja explorado ou corra mais riscos de morte, como o racismo nos leva a fazer, conscientemente ou não.

Respirar o ar contaminado do entorno de uma usina de carvão, ter problemas respiratórios por causa da poluição dos combustíveis fósseis nas metrópoles ou das queimadas nas florestas, sofrer por causa dos temporais cada vez mais intensos e imprevisíveis – nada disso pode ser aceitável na vida de nenhum indivíduo.

Como bem descreveu o jornalista e ativista ambiental Gabriel Perez dos Santos, no blog da 350.org, vozes negras também têm que importar no movimento climático. Sem respeito aos direitos de todos, não existirá justiça climática.

O que podemos fazer?

Para começar, todos nós podemos ouvir e refletir sobre o que pessoas pretas, pardas e indígenas têm a dizer sobre racismo – e também sobre a relação entre racismo e combate à crise climática.

Em breve, a 350.org oferecerá suas redes sociais a pessoas negras dispostas a falar sobre esses temas. Além disso, o próximo post da nossa série sobre racismo trará sugestões de reportagens, entrevistas e artigos de pessoas pretas, pardas e indígenas a respeito desses assuntos.

Fique ligadx!

Leia também os posts anteriores da nossa série sobre racismo e clima:

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Peri Dias é gerente de Comunicação da 350.org na América Latina

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Créditos das fotos:

O garoto coberto de óleo e usando sacos plásticos como equipamentos de proteção é Éverton Miguel dos Anjos. Ele apareceu nesta foto, de autoria de Léo Malafaia, enquanto ajudava a limpar as manchas de óleo na Praia de Itapuama, em Pernambuco. A imagem chamou atenção para a inação dos governos frente ao vazamento de óleo que atingiu o litoral nordestino em 2019.

 

  • Twitter da Ana Claudia Mielke: https://twitter.com/anacmielke/status/1269046444167700480